15 novembro 2006

61. AI, O MERCADO DE PEIXE

O que pode ser mais autêntico do que comprar peixe directamente ao pescador no seu regresso da faina e tê-lo cozinhado num restaurante próximo? No guia Lonely Planet e nas palavras do funcionário do The Base - backpacker's (onde estamos instalados por metade do preço do que no Íbis) quase que se vive um sonho com a leitura destas descrições. Nada mais puro, nada mais fresco. Pois é, e nada mais enganoso.
Quatro e meia, cinco da tarde chegámos de chapa ao mercado de peixe da cidade de Maputo. Afinal as instalações do mercado não ficavam sobre a praia mas antes do lado de lá da estrada marginal. Pescadores e seus barcos nem vê-los, nem cheirá-los. No mercado bem menos de metade das bancadas estariam ocupadas. Logo ali ao lado um vendedor debatia-se por endireitar um peixe que tinha ficado torto na congelação. Peixes arrumados lado a lado, por tamanho, por qualidade: peixe serra, peixe pedra, peixe encarnado, pargo, corvina, camarão vários calibres, lulas idem, caranguejos e lagostas vivos, amêijoas. Um instrumento como uma pequena esfregona de fibras plásticas enxotava as moscas (algumas delas), alguns baldes de água.
Tenho algumas noções teóricas sobre como escolher peixe. Um aspecto geral e um cheiro saudáveis são-me instintivos, depois as guelras vermelho vivo, os olhos salientes e transparentes e as escamas arrumadinhas resumem o que aprendi nas lições maternais durante algumas idas "à praça". Preços de peixe não faço ideia, preços ali no mercado muito menos (manda a boa regra profissional que não se assinale o preço), preços em Moçambique sei que é justa a metade do que o vendedor propõe inicialmente.
Na primeira volta às bancadas fomos assediados por todos os vendedores de quem somos logo "amigos". Mostrei-me sisuda, não encetámos negócio com ninguém. Saímos e fomos avaliar a zona dos restaurantes. Igual, assediados por todos e de todos "amigos".
Regressámos ao mercado começámos a estabelecer contactos. Este já provámos, este há lá, este é grande, este é pequeno, este não. E este? Era o peixe que estava debaixo de todos os outros. Achei horrível o aspecto dele, com a pele toda engelhada e sem olhos. Segundo a teoria do vendedor o peixe já estava amanhado. Abriu-o, não tinha tripas, as guelras não eram vermelhas vivas e a barbatana traseira do peixe estava toda ratada. Atirei ao ar que era grande demais para duas pessoas. O vendedor ripostou que aquilo é que era bom que tinha muita carne. Pesou-o numa balança que tirou do bolso. Um quilo! 120, pronto 100 e eu vou ali arranjá-lo (outra vez? não estava já arranjado?). Não quero. Vamos dar outra volta. No regresso ainda estávamos mais baralhados. Ou íamos para as lulas ou levávamos peixe num tupperware para o quarto. E nisto o Quico decidiu-se e mandou embrulhar o peixe sem olhos. Tive tempo para lhe dizer que só uma de coisa estava eu certa: o peixe sem olhos é que que não. Mas já estava. A "amiga" vai vê que vai voltá prá dizer que o peixe 'tava bom!.
Pois foi, eu voltei lá depois do jantar mas o gajo já tinha fugido. Aquela corvina era farinha. Nunca tinha comido um peixe assim. Tal e qual uma sardinha moída mas do tamanho de uma dourada de mar. Bagh!
Depois do fiasco o pobre do Quico é que ficou mais em baixo. Confessou que até se tinha deixado convencer pelo discurso do gajo e que estava à espera de no fim do repasto reconhecermos ambos que o vendedor até tinha sido um bacano. Eu lá consegui desamarrar a burra: Mamã, aprendi bem a lição sobre como escolher peixe fresco!


Nas nossas viagens há sempre um conjunto de acontecimentos ou peripécias que não nos "chamam" para os posts, não nos apelam para o relato. São regra geral acontecimentos intensos, quer soberbos quer merdosos que, sem que pensemos muito nisso, acabamos por manter em privado, podendo calhar contá-los ou vivo ou não.
A nossa ida ao mercado de peixe foi um acontecimento intenso merdoso sobre o qual, na altura, não me apeteceu escrever nada. Agora, largos dois dias passados sobre o episódio e talvez com o ar fresco da perspectiva da partida, apeteceu-me relatar o assunto aproveitando para proporcionar aos auto-entitulados "invejosos" com a nossa viagem (mais) uma visão realista de episódios menos bons que salpicam esta aventura.



o mercado de peixe antes da escolha; barcos no porto marítimo de Maputo

2 comentário(s):

Anonymous Anónimo disse...

10 abafo ...

Caramba! Embora não tenha sido nunca objecto particular da minha atenção, penso que bem lá no fundo acalentava a esperança de ter tido um pequeno papel na vida dos meus filhos ... sem protagonismos, mas nas coisas importantes da vida, como a amizade, a lealdade, a atenção aos outros e ao que está a nossa volta ou a volta do planeta. Também nas outras coisas indispensáveis à vida, como a música, ou o teatro ou o cinema ou outra liberdade qualquer como o prazer das viagens ... e acima de tudo gostava de ter dado um pequeno pedaço proteico no gene da curiosidade, da procura constante e da não desistência de tudo o que nos é indispensável.
Mas não, depois da leitura deste post chego a conclusão que o que é valorizado, após 3 décadas de vida é a minha capacidade de transmitir conhecimentos relativos à avaliação da qualidade de frescura do peixe!!! E pior ainda, apesar dos objectivos terem sido atingidos - o peixe de facto era duvidoso - dos resultados já não se pode dizer o mesmo ! a capacidade de persuasâo não é uma característica da Jota.

8:39 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Não é só uma questão de saber escolher o peixe. É também uma questão de estar muito atento ao guia da Lonely Planet e colocar um NÃO atrás de cada frase lá escrita, e NUNCA, mas NUNCA, cair em nenhuma das recomendações que lá vêm.

Em caso de um desejo intenso, súbito e intempestivo de seguir uma indicação do LP, engolir imediatamente o passaporte e contar até 8.546.745 de trás para a frente.

Yep.

2:26 da manhã