07 novembro 2006

52. Fotos sobre como chegámos nós a Pemba

e flashes de como nos instalámos na Praia de Wimbi


(atenção post longo)


Por incrível que nos tenha parecido, foi mesmo à cidade de Pemba que viemos dar depois da que foi, de todas, a viagem mais dura. Foi uma progressão lógica (nenhuma surpresa, portanto) no crescendo de emoções que temos vindo a experimentar nestes trajectos em transportes públicos sobre vias moçambicanas.
Km 0, Ilha de Moçambique
E se começou bem esta viagem! Acordámos pelas duas da manhã para apanhar o "chapa" das 3 que não passou. (Entretanto vimos o Malato no 1 conta todos na RTPi - ai saudades!). Só às 4 seguimos numa outra Hiace que nos deixou do lado de lá da ponte para a Ilha de Moçambique. Tresandava a peixe seco lá dentro. A saída da Hiace foi feita ao gosto do freguês: ou por uma das janelas, ou saltando sobre os bancos da frente, pela habitual porta de correr é que não. Estava perra e nem três homens a demoveram!
Km 3
De novo transbordo para um autocarro de 25 lugares, idêntico ao da vinda (o tal demasiado largo para caber na ponte), mas que desta vez só esperou que "patrão [o meu] foi mijá!". Lá nos voltámos a arrumar, 5 rabos em 4 lugares e o meu ficou com metade no ar. Arranjado um calço apropriado até conseguimos dormir, embalados pelos solavancos da estrada e pelos pios de uma galinha, passageira num lugar mais dianteiro.
Km 123, Namialo
Paragem para trocar de autocarro e assistir à colocação de duas cabras, vivas, no tejadilho de outro (talvez fosse para o jantar: ummmmm souflé de chèvre!).
Horários de ligações entre autocarros ainda não há em Namialo, tampouco há uma paragem-abrigo. Esperámos à sombra das nuvens, comprámos cajú torrado (castanha, chamam-lhe aqui) e presenciámos as frenéticas vendas de que iam sendo vítima as Hiaces, as Pick Ups e os Buses que ali paravam. A mercadoria com mais saída eram os pacotes de bolacha Maria ou Waffles mas as alternativas abundavam: castanhas torradas, ovos cozidos, garrafas de "Coca-Fanta-Sprite", alguma água, pacotes de sumo Santal Tropical, sandes incógnitas (de ovo mexido de um amarelo excessivo) e uns caseiros torcidos fritos, vendidos num alguidar à cabeça de uma menina. Fora da área alimentar vi passarem óculos de sol, conjuntos de perfumes, um único desodorizante Fá Roll-on (várias passagens, não devia ter saída), mas o mais inesperado de tudo foram uns almofarizes e respectivo pilão em madeira (quem ali teria uma máquina de tornear capaz de fazer aqueles objectos? de onde viria aquilo? pois, da China calculo!).
Uma hora depois, quando o autocarro com destino a Pemba chegou, foi um apertão para que vendedores, compradores, passageiros com bagagem entrando e passageiros com bagagem saindo, conseguissem vender, comprar, entrar e sair.
Para nosso azar os lugares sentados estavam já esgotados mas, por sorte (para a empresa Grupo Mecula) os bilhetes não! Seguia entrando quem quisesse, nós quisemos e entrámos.
Não demorou muito para que o Quico se apercebesse que o telemóvel já não estava no bolso das calças (recuso-me a comentar que tipo de bolso se trata). E não tendo o telemóvel pernas próprias foi-nos fácil concluir que o haviam surripiado nos apertos à entrada. Nada a fazer, pelo menos ali, pelo menos para já. Far-nos-á falta o tlm, tem o roaming activado, mas era dos vários objectos electrónicos que transportamos aquele que menos importava perder.
Km 125
Resignados com a súbita leveza do nosso lastro, aparcámo-nos de pé, na coxia, logo à entrada. Eu tinha à justa espaço para assentar os meus dois pés de botas calçadas e largura, à altura dos ombros, para esticar os dois braços e me segurar nos arrumos superiores. Encostava-se a mim uma filha, amarrada às costas da mãe. Desconfortável, a progenitora mudava sistematicamente as posições do lenço (já tinha perdido um sapato à miúda) e nesta sua insatisfação lá ia eu apanhando com a carapinha palhuda da miúda nas minhas costas. A dada altura a criança reparou que eu era branca. Arregalou os olhos e fixou-os em mim.
Do outro lado, no chão, havia uma trouxa. Sobre ela uma caixa plástica rectangular e, no topo, uma senhora sentada que segurava, e esmagava, a pilha entre as próprias pernas.
No banco, para onde eu estava virada, sentava-se uma família de mãe com filha ao colo e pai. O casal era novo e parecia ter um relacionamento que raras vezes vi por aqui. O normal é encontrar mães sozinhas, de produção mais ou menos independente e porque "estão em boa altura de ter um filho". Estes três, por seu lado, aparentavam ser uma família constituída com intenção das que perspectivam um futuro em conjunto. Viriam talvez da cidade de Nampula com uma mentalidade social mais urbanizada. A dada altura o marido adormeceu de boca aberta. A mulher tentou fechá-la duas ou três vezes mas sem sucesso. Abanou o homem, acordou-o e explicou-lhe em jeito terno que "ássim podi entrá mosca... fórmiga..."
No banco à frente deste uma outra mãe só, de filho ao colo. Os dois com o mesmo beiço de um carnudo castanho claro com arestas bem vincadas. Os dois a dormir. O miúdo, em tronco nu, arrumava as suas mãos dentro do decote largo da mãe segurando-lhe as mamocas.
Bem embrenhada ia eu dentro deste pulsar de África que me distraía do desconforto de estar a viajar em pé, apertada e desagradavelmente perfumada.
Mas há que reconhecer que até aqui o dia nem tinha corrido assim tão mal.
Km 151
Foi depois que a coisa "doeu". Depois: quando a revisora-mandona nos convidou a sentar próximo de si, numa zona ligeiramente elevada, de plástico (provavelmente de protecção a uma peça mecânica qualquer), que separa o espaço do motorista.
Passámos a ir sentados, é certo, mas também apertados e de nádegas directamente no duro. Encontrar uma posição era de todo impossível. O espaço para os pés tinha de ser esgravatado entre bagagem e pés descalços. O tronco caberia de lado ou entalado. Pés-pernas, mãos-braços-ombros dormentes, e um perfume mais concentrado e quente que o anterior.
Parece-me que aqui se está habituado a deixar o corpo encostar-se até que se ampare seja ao que for: bebés amarrados às costas das mães com a cabeça à banda; mulheres e crianças sentadas em monte partilhando a sombra de uma árvore; ou as crianças que se sentam no chão deste autocarro e dormem sobre trouxas ou se enrolam amparadas por si mesmas! Ora eu, que na minha terra tenho uma esfera pessoal sobredimensionada, senti-me mesmo bem com o cotovelo e o joelho de um nas costelas, com o calor febril do outro nas costas, com as ancas de um macho (e se tivessem sido as de uma Tia Moçambicana?) sentado à sua própria vontade espremendo uma das minhas coxinhas, e isto para não falar nas suspeitas manchas brancas na cabeça rapada de um dos miúdos a meu lado que, inevitavelmente, lá ia pendendo sobre mim.
O meu rabiosque, já nada bem tratado pelos assentos de buses anteriores, ganhou em cada bochecha dois vergões de um vermelho abrasivo que me condicionaram o sentar nos três jantares sequentes a isto.
Km 203
Para desmoer, por várias vezes nos levantámos e seguimos um pouco de pé. Mas nem sempre havia espaço para todos. É que ali à frente ficavam também os passageiros volantes, de pé, qualquer que fosse o seu estado ou condição: mulheres com crianças de colo ficavam de pé; mulheres velhas com dificuldade em andar ficavam de pé; crianças ficavam de pé, ou arrumadas no chão tal como as trouxas; passageiros carregados ficavam de pé, carregados. Lugares de simpatia para algum destes necessitados não havia. Nem o houve quando entrou um tipo que se arrastou à força de braços pelos degraus do bus, com a perna engessada até meio fémur. Creio que se arrumou entre gentes e bancos, apoiando-se, sem canadiana ou bengala, na sua própria perna engessada. Ia para o hospital.
A resignação com que estes moçambicanos aceitavam seguir dentro daquele autocarro impressionou-me. Assim o serão eles em cada autocarro e todos os dias da sua vida. Ouvi-os dizer: "o que interessa é chegar, o que interessa é chegar...".
Km 222
A cada paragem o ritual repetia-se e agonizava-me a paciência. Tínhamos de dar passagem aos que saíam com bagagens e aos que entravam com bagagens (e constatar que subtrair estes últimos aos primeiros nunca dava um número natural positivo). Tínhamos de esperar que vendedores e compradores acertassem negócio e, depois, tínhamos de dar passagem às novas aquisições: bolsas de palhinha, várias; um par de pratos de vime, redondos com uns 80cm de diâmetro. E géneros alimentares: tomates, pimentos, cebola, alhos - todos em tamanho baby, concerteza - mandioca, feijão seco, amendoins. Também se vendiam galinhas, vivas coitadas, penduradas à cintura ou nas mãos como se fossem um molho de chaves. No entanto, era proibida a sua entrada a bordo, mas, pelo que vi, não a sua saída!
Numa destas paragens aquela tal família "intencional" comprou um papagaio verde dentro de uma gaiola feita de canas com 4 dedos de altura. Desgraçado do bicho, mal cabia na gaiola e seguia de bico aberto para contrariar o calor. (Ainda ouvi a mulher esclarecer que macaco não queria em casa porque mordia na minina, ao que o homem argumentou, matreiro, que macaco não mordi - ainda não teve o prazer de conhecer o babuíno que, nas Cataratas Vitória, nos tentou gamar o saco do pic-nic!).
E o ritual de cada paragem completava-se com o fecho mais-ou-menos da porta. Para tal tínhamos de esperar que dois fulanos conseguissem encaixar o topo superior do eixo da porta, em sincronia com o comando dado pelo motorista que activava o mecanismo hidráulico.
Km 291, Namapa
Paragem alongada (20 min. que foram mais). Estávamos a precisar de falar um com o outro, a precisar de comer e de verificar nas mochilas pequenas se não estaria por ali o telemóvel (nicles). Ainda assim conseguimos associar a existência de um anúncio "telefone público" à possibilidade de efectuar uma chamada para Portugal a fim de tentar cancelar o cartão e roaming do telemóvel. E com sucesso! Comemos e bebemos qualquer coisa e assim arranjámos a energia necessária para voltar a entrar naquele autocarro.
Km 307
Reparei que a gaiola de canas estava pousada ao abandono e vazia. Pensei que o papagaio sucumbira de stress ou de abafo, mas ainda ponderei que, num momento de consciência, talvez o tivessem dado à liberdade. Por esta altura o pai da família trocava anedotas e adivinhas com uma personagem recém entrada no autocarro. Um tipo de óculos escuros, acho que um-tanto-ou-quanto embriagado, um verdadeiro relações públicas a bordo que vestia uma T-shirt amarela onde se lia "Eu tenho HIV-SIDA".
Km 388, Sunate
Saída da família "intencional". Deixaram ficar a gaiola no chão.
Km 411
Com a proximidade de Pemba a revisora-mandona começou a atulhar o cockpit de géneros alimentares que ia comprando em paragens onde já ninguém descia nem ninguém entrava. O motorista ainda comentou duas ou três vezes: "Julieta, vámo já támo atrasado. Julieta, tá gostando di conversá aí? Eu também gostava descê prá conversá.Vámo!". Mas ela tinha uma lista de coisas, encomendas de outros, e concentrada fazia entrar sacos e molhos de mandioca riscando o rol e tomando nota dos valores em dívida. O dinheiro saía da bolsa dos bilhetes ou do bolso da camisa. Talvez por isto fosse a sua anterior prudência dizendo aos passageiros nunca ter troco, apesar da quantidade de meticais miúdos que recebia dos bilhetes de viagens mais curtas. (E fartou-se de obrigar a travar conhecimento dois passageiros que desciam no mesmo sítio quando mandava um deles emprestar dinheiro ao outro.)
Km 453
Percebi, por uma conversa, que o papagaio afinal tinha conseguido fugir do caniceiro e que andaria ali para debaixo dos bancos. Oh!
O da T-shirt amarela onde se lia "Eu tenho HIV-SIDA" parecia ter ficado responsável por apanhar a ave e procurava-a agora que havia menos passageiros.
Km 458
Encontrou-o. Apanhou-o com a mão protegida por um saco de plástico. Tentou empurrar o papagaio à força para dentro da gaiola mas temeu a bicada e o animal ganhou a luta e voltou a fugir, desta feita para a zona dos pedais dos condutor. Havia ali um buraco no chão. Terá escapado. Mas esperava-lhe toda a dificuldade do chassis, dos seus mecanismos que rodam, das sucções de ar, e dos outros carros.
Km 463
Chegámos a Pemba. E era mesmo Pemba!
"Cansadinhos" apanhámos um Taxi para a praia de Wimbi a 5 quilómetros para Sul.
Km 468
O challet de dois mini-quartos e uma mini-sala do Complexo Turístico Náutilus pareceu-nos caro e espaço demasiado para duas pessoas a quem bastava um quarto. O Lonely Planet recomendava o Russel's Place. E nisto pára ao nosso lado uma pick up de caixa aberta TT que pergunta para onde queremos ir. Era o Russel. Deu-nos boleia até ao Place que afinal ainda era longe (olha se nos tivéssemos metido a fazer isto a pé! Nunca mais cá chegávamos e "cansadinhos" que estamos...)
Km 472
Só há campismo e dormitórios, os challets estão todos ocupados. Quando vagam? - perguntámos considerando a hipótese de aguentar dormir na tenda uma ou duas noites. Ah pois, isso não sabemos. Venham ver os dormitórios. (Fomos). Não nos sabe dizer quando vaga um challet? - insistimos na pergunta. Ah pois não, queriam mesmo um challet? Era, ciao.
E como tem vindo a ser hábito aqui, à simpatia na recepção segue-se a indiferença na despedida. Fomos a pé. Pedimos boleia ao primeiro que não parou. Não pedimos mais. Ninguém parou. Continuámos a pé, pela estrada de areia mole, de mochila às costas, ao calor.
Km 476
O Complexo Caracol e a Residencial Liz não se verificaram mais baratos do que o Complexo Turístico Náutilus, o único assente nas areias da praia. Foi lá que ficámos.
"Cansadinhos" ainda fomos a tempo de ir a banhos na pequena praia do Wimbi, ao pôr-do-sol que não se afogou no mar..

2 comentário(s):

Anonymous Anónimo disse...

Suei tanto a ler este post que agora tenho de ir tomar banho. Mas primeiro vou beber uma limonada. Em resumo: uf!

12:14 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Mas afinal onde é que estão as fotos? ou tenho mesmo de ler este texto quilometrico?

2:38 da manhã