02 novembro 2006

43. VELOCIDADE DE CRUZEIRO

“The Nellie, a cruising yawl, swung to her anchor without a flutter of the sails, and was at rest. The flood had made, the wind was nearly calm, and being bound down the river, the only thing for it was to come to and wait for the turn of the tide.”
primeiras frases de Heart of Darkness, Joseph Conrad, 1902


“The Philae, a river cruiser, lay aslant of the bank, captive in her mooring lines in the winter sunshine at Aswan on the Nile.”
primeira frase do capítulo 3 de Dark Star Safari, Paul Theroux, 2002


O Ilala, um navio de cabotagem, anunciou a sua vagarosa chegada com um silvo interruptor da calmaria da tarde quente e fundeou ao largo, em Chipoka no Lago Malawi.


Este pretensioso malabarismo plagiado é uma graça que evoca o misticismo que a navegação “por esse rio acima” rumo ao desconhecido em tantos de nós despoleta. Para além dos dois extractos literários acima mencionados, ocorrem-me à cabeça os filmes The African Queen de John Houston e Apocalipse Now de Francis Coppola (adaptado do romance de Conrad) ou ainda a jangada de Huckleberry Finn cruzando-se com os barcos de propulsão por roda traseira no Mississipi.
No Ilala (nome do local onde morreu David Livinstone), não viajámos nem num rio nem propriamente rumo ao desconhecido. Este navio de 620 toneladas, misto de carga e passageiros, sobe e desce o lago Malawi todas as semanas. Parte de Monkey Bay, no Sul do lago, à sexta-feira de manhã e chega domingos à noite a Chilumba, no Norte, de onde zarpa segunda-feira à tarde para estar de regresso a Monkey Bay na quarta-feira pela mesma hora. Descansa portanto um dia por semana, a quinta-feira santa. Isto se não houver atrasos, que os há, invariavelmente. É que o Ilala presta um autêntico serviço das Áfricas. Atrasado, atafulhado e inóspito ao mesmo tempo, precário, sórdido mas essencial e inevitável para uma série de aldeias ao longo do lago. Ele é o principal, e quase único, elo de ligação dessas comunidades com o mundo exterior. A este serviço público –como que social- a companhia Lake Malawi Services (detentora do Ilala) adiciona-lhe um uso misto de exploração turística e transporte de eminências. Assim sendo, as zonas de estar/comer/dormir para passageiros no Ilala organizam-se por três pisos (localizados acima do porão - para carga e máquinas).
No lower deck localizam-se: a 3ª classe (≈5 US$ full fare p/p), um espaço amplo, escuro, quente, fumegante e de capacidade ilimitada de passageiros (o record ronda os 500); a 2ª classe (≈10 US$ full fare p/p) um compartimento pequeno com bancos corridos um tanto ou quanto separado da bagunça vizinha; e umas reles instalações sanitárias contíguas a uma amostra de cozinha industrial.
O piso acima do lower deck é ocupado pelo compartimento de refeições vip (e respectiva cozinha) e pelas cabines de 1ª classe, cinco no total: quatro delas para duas pessoas e que partilham instalações sanitárias comuns (≈75 US$ full fare p/p), e uma cabine/suite com casa de banho privativa (≈100 US$ full fare p/p).
O top deck, um vasto convés parte descoberto parte coberto e separado da ponte de comando do navio por um bar, é um espaço reservado aos passageiros das cabines e aos detentores de bilhetes first class deck (≈45 US$ full fare p/p) – bilhetes estes que permitem aos seus detentores dormir ao relento sobre o tabuado.
O resultado prático desta estratificação económica é espectável e muito africano. Em baixo, um caos de pretos e pretas, pretinhos e pretinhas, sacos e sacões, cabras e galinhas, panelas de farinha, fogões a carvão, tigelas e chinelos, loiça esmaltada e feijões enlatados. Em cima, um desafogo de meia dúzia de brancos e brancas, pretos elitistas, espreguiçadeiras e cervejas, protector solar e óculos escuros.
Na nossa viagem, a meia dúzia de brancos e brancas, éramos nós e os canivetes suíços em first class deck; um casal de americanos da Florida que acompanhavam os pais de 80 anos na sua última visita ao país onde foram missionários há 40 anos, um militar alemão em férias e uma outra família americana (pai, mãe e filha) a caminho dum resort de luxo na Ilha de Likoma nas 4 cabines first class; e finalmente um sul-africano de meia-idade residente em Joanesburgo que viajava de férias acompanhado de um jovem malawi, e que se instalaram na cabine/suite first class (as mentes perversas femininas logo suspeitaram de um caso de escravidão sexual, mas eu fiquei convencido com a explicação dele - que o rapaz era filho de um sócio seu na empresa, que o ajudava porque falava a língua e que era sempre bom ter ajuda para o carrego das malas).
Além do sol, a principal distracção desta classe é assistir, duma posição aristocrática, ao embarque e desembarque dos passageiros e mercadoria em cada paragem. Apesar de estar equipado com guindaste para estivar a carga, não vimos este em funcionamento porque o Ilala não atracou a cais algum. Os transferes sempre foram efectuados ao largo. O navio dispõe de duas barcaças a gasolina que se içam nas alhetas e foi através delas que tudo entrou e saiu.





o Ilala; o top deck; o piso das cabines de primeira classe


A rotina sucedia-se. Silvava o Ilala à chegada aos cabos, anunciando o fundear. Desciam as barcaças e acostavam-se ao Ilala. Começava o carrego de bens e pessoas em tom aflitivo. Os homens fortes assumem posição de destaque ao passarem de mão em mão os carregos – malas, sacos, farinha, arroz, grades de coca-cola, galinhas, bicicletas, miúdos, mulheres, bebés, idosos, vai tudo ao monte!
Este espectáculo grotesco é apreciado pela elite branca em pose debruçada sobre a balaustrada. Entre o fascínio e a repulsa tecem-se comentários: “Ai como aquele miúdo vai ‘à banda’ lá pra dentro! Os sacos de farinha já vão rotos e estão-se a molhar! Olha, estão a discutir o preço das grades de coca-cola, não é pacífico! Na próxima paragem calha-te e ti bater ali com os costados! Naquela praia o desembarque é com a água pela barriga! Lá se vai o arroz! Porque é que não eles não constroem um pequeno cais que seja? Têm ali pedra e madeira mesmo à mão?”
E isto é assim há 50 anos, por quanto tempo mais?





as barcaças e a elite debruçada; a aflição dos transferes

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