27 outubro 2006

37. Tanta-Terra

Ao longo destas semanas de viagem, e de movimento, tem-nos acompanhado um grito contínuo. Vem da Terra. Nunca eu tinha ouvido uma Terra gritar nem tão alto nem com tanto fôlego. Por toda esta África Austral a força da Terra, da Natureza, enche-nos os ouvidos, os olhos, queima-nos o corpo, faz-nos sede, deixa-nos o corpo pegajoso. Persegue-nos e fica-nos na cabeça a inquietação sobre esta força.
Na Europa, a geografia retalha-se e deixa-se arrumar em países relativamente pequenos. Aqui no sul de África as características de um lugar podem durar todo o dia de viagem num bus a 100 à hora. As paisagens que observamos quando parados podem perder-se da nossa vista e fugir ao controlo das delimitações que mesmo sem querer costumamos instituir. Subir ao Waterberg Plateau e avistar aquele mar de terra sem igual; enjoar com as miragens no lago seco do Etosha; atravessar um deserto sem vida, só de rochas e areias para de seguida sentir o frio e o cheiro a putrefacção de areal da Costa dos Esqueletos; ver o rasgão na crosta terrestre nas Cataratas Vitória e ao fundo, sempre ao fundo, o "fumo que ressoa".
Bem, e se esta Natureza não tivesse a força que tem, certo seria que não nos cruzaríamos com tantos animais bestiais em plena descontracção ou agitação quotidiana: elefantes, zebras, antílopes, leões, rinocerontes, hipopótamos.
Mas a força desta Natureza Africana não se fica pela dramática dimensão das vistas ou pelos animais, na Europa em de jardins zoológicos, aqui em justa liberdade. Nem pensar!
Sente-se continuamente esta força no grito do calor que às sete da manhã já magoa o corpo, que no pino faz das sombras quase-pontos, e que só a meio da noite nos deixa refrescar na tenda. Sente-se nas tempestades de relâmpagos que começam ao longe e depois vêm ter connosco com chuva grossa e vento afiado.
Sente-se a sua força a rebentar em forma de enormes fortes árvores que vingam nesta secura, na forma como se agarram ao chão com um tronco grosso, ou como conseguem fazer sombra sobre si mesmas. E ao mesmo tempo sente-se em árvores magricelas, de copas nuas ou apenas salpicadas de folhas; e nas buganvílias e nos jacarandás coloridos; e nos cactos e aloés; e nos arbustos que parecem mortos-secos mas que afinal assim vivem.
E para além dos senhores grandes mamíferos, quantas aves, insectos ou lagartos ainda reinam aqui? Em aves, o sortido dos "vulgares" supera um dos bons spots portugueses. Há-as umas iguais às daí - pardais, poupas, gralhas, há-as tropicalíssimas com bico narigudo, com caudas de 30 cm ou franjas nervosas, há-as marítimas como a fisheagle ou o sneeker que pescam sem rede. Dos lagartos, imaginem só o que foi o suspense, no Ngepi Camp, enquanto tentávamos deslindar que bicho se mexia atrás de umas ervas. Era afinal um bichão, um lagarto do tamanho de uma das minhas pernas e ainda mais a cauda. Quanto aos insectos poderíamos relatar as peripécias que são os banhos ao ar livre ou preparar a cama (a tenda acaba por ser o local mais fácil de dormir sem pensar em bichos). E para remate, adormecemos ao silvo continuado de grilos em simultâneo com acordes coaxados de rãs (que naquela salada de sons não sei como encontram os seus parceiros).
E como se povoa o Homem nesta Terra que grita continuamente?

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