49. Swahilis
A palavra swahili deriva do Árabe e significa algo como "residente costeiro". Estima-se que hoje em dia, entre 300 e 700 mil pessoas sejam swahili ou portadores da cultura swahili, digamos assim.
A sua origem remonta ao século IX, período em que mercadores muçulmanos vindos do Golfo Pérsico estabeleceram rotas marítimas comerciais com a costa Este de África. Ao ritmo dos ventos da monção (Norte-Sul no início da Primavera, Sul-Norte no início do Verão) navegaram frotas; trocaram-se tâmaras, especiarias e ouro por madeira, marfim e escravos; misturaram-se raças; desenvolveu-se uma lingua; implantou-se uma religião; gerou-se uma cultura costeira...
O som da ondulação nas rochas e na areia era tão límpido e delicado quanto o eram a água e a calmaria daquela manhã de maré baixa. Ghanjah e Baghlah conduziam o barco por entre os baixios até nós, que aguardávamos, com a água pelos tornozelos, junto ao baluarte Norte da fortaleza de D. Sebastião, na Ilha de Moçambique. Em pé, equilibrados entre a borda e os bancos, empurravam o veleiro de velas arreadas com varas de três metros, cravando-as compassadamente no fundo do mar. Djambo estava connosco na margem e ia instruindo gestualmente os homens dos paus. Foi com ele que acertei o negócio antes do pequeno almoço: 1000 meticais para nos levar e trazer, de barco à vela, à Ilha de Goa, um ilhéu faroleiro a umas cinco milhas de distância.
Subimos a bordo e Djambo assumiu de imediato a posição de comando do leme, enquanto que Ghanjah e Baghlah continuavam o jogo do vara-pau. Logo que a profundidade dos rochedos e corais deixou de ameaçar o casco, içámos a vela. Uma leve brisa foi suficiente para enfunar a dita-cuja e fazer-nos progredir suavemente numa bolina larga.
A hierarquia da tripulação esteve sempre bem definida. Djambo "capitaneava" e dava as ordens que, Ghanjah, "o imediato" e Baghlah "o grumete", seguiam sem hesitações. Djambo era de carácter reservado, mas gostava de ser ele a responder às minhas questões, mesmo quando estas eram dirigidas aos outros tripulantes. Ghanjah mostrou-se um envergonhado de gargalhada fácil e Baghlah revelou um facies carrancudo interessante. Entre eles falavam swahili e connosco um português altamente simplificado e gestual. Não lhes averiguei das idades (e é sempre arriscado adivinhá-las em indivíduos de raça negra) mas não creio que estes rapazes tivessem mais do que vinte anos. Baghlah era decerto ainda um adolescente.
Se em Djambo apreciei a sua responsabilidade e profissionalismo no cumprimento do acordado, já Ghanjah me conquistou tanto pela sua simplicidade de trato, como pela força esguia das suas manobras marinheiras. Todavia, foi o enigmático Baghlah o personagem mais fascinante. Sempre compenetrado nas suas tarefas, nunca saiu do seu posto. De regresso à Ilha de Moçambique, nesse dia ao anoitecer, passámos pela praia e lá estava ele, fundeado ao largo, único tripulante do "navio" a acenar-nos "Olá"!
O vento corria pobre e os dois swahilis de ranking mais baixo, remavam. Num dos bordos, Djambo trocou de lugar com Baghlah com o intuito de aumentar a cavalagem do remar e disse: "é pra chegar lá!...Agora!" No bordo seguinte ofereci-me eu para remar. Passados dez dias, enquanto escrevo estas palavras, acaricio a cicatriz no meu polegar direito resultante daquela minha oferta - ao fim de 10 remadas já tinha feito uma bolha que ao cabo de 20 já estava rebentada.
a calmaria da maré baixa, Baghlah e o jogo do empurra, Baghlah e Djambo; a tripulação: Djambo, Ghanjah e Baghlah; o enigmático Baghlah fundeado ao largo
Dhow. É este o nome destas embarcações de tradição árabe, cuja principal característica é a sua armação vélica e a forma triangular destas. São barcos variáveis na sua dimensão, desde simples canoas escavadas de um tronco de árvore com um flutuador lateral (tipo catamarã), a veleiros de complexos cascos de madeira com 15 metros de comprimento e capacidade para 30 tripulantes.
O dhow onde seguiamos deveria medir aí uns 8 metros e era incrivelmente rústico. Suspeito que as ferramentas que o construíram seriam extremamente rudimentares. Poucas serras passaram por ali. Praticamente, não existem samblagens (encaixes) entre as peças de madeira constituintes do casco. Chamar tábuas às placas que cobrem o esqueleto do bicho, e que nos amparam da água, é um "eufemismo"! Tudo foi pregado, umas coisas em cima das outras. As peças curvas, tão necessárias ao hidrodinamismo das formas do barco, são autenticamente ramos de árvore contorcidos (escolhidos a dedo os que melhor se adaptaram à função desejada). Esta rudeza construtiva deveria resultar num conjunto grotesco mas, surpreendente, não resulta. O barco é equilibrado, elegante mesmo e cumpre decerto as formas "regulamentares" dos standards da região. Na minha cabeça penso que este barco já deve ser bastante antigo e fico boquiaberto e desconfiado quando Ghanjah me diz que tem 2 anos, que o construiu ele próprio em 3 meses, que deu muito trabalho e que o fez maior para poder levar mais turistas, porque os dhows da pesca não precisam de ser tão grandes.
Em vagarosos ziguezagues fomo-nos aproximando da Ilha de Goa e, com ela, novamente de baixios. De vela arreada, repetia-se o processo das varas, só que desta feita dificultado pelas vagas de mar aberto que, apesar da calmaria, nos balançavam pronunciadamente. A manobra parecia arriscada, mas a tripulação fez ponto de honra em nos deixar mesmo na areia. Lá avançávamos, habilmente serpenteando por entre as rochas, até esse objectivo. Cumprido!
Dos passageiros, só a inglesa Becky, com quem partilhámos o aluguer da barcaça, não estava radiante - enjoou valentemente! Ali chegámos, movidos por forças motrizes elementares, à mercê de saberes tão velhos apreendidos por swahilis tão jovens...
Estas travessias oceânicas, que se estenderam da Índia ao Sul de África (os descobrimentos Árabes) revelaram, seis séculos antes das nossas caravelas, uma astúcia marinheira muito avançada. Interessante e ao mesmo tempo desolador é que, passados 12 séculos, a cultura swahili persiste, mas como que estagnada no tempo (não se efectuam as mesmas rotas comerciais de outrora mas pratica-se uma economia de subsistência baseada, obviamente, na pesca).
Desde o século XVI, os swahilis "levaram" com portugueses, ingleses, holandeses e alemães, vindos de terra e de mar, e mantiveram-se impenetráveis na sua identidade. Isto para um povo que resulta da mistura da raça árabe com a africana, diz algo sobre o interesse que a cultura ocidental por aqui despertou: "com esses não nos misturamos nós!".
no lago Malawi: um elegantíssimo dhow de duas velas, uma canoa de tronco, um dhow com velas de sacos de arroz ao amanhecer; a rusticidade do nosso dhow; a chegada à Ilha de Goa e a vista do farol sobre o ilhéu com a Ilha de Moçambique ao fundo
A sua origem remonta ao século IX, período em que mercadores muçulmanos vindos do Golfo Pérsico estabeleceram rotas marítimas comerciais com a costa Este de África. Ao ritmo dos ventos da monção (Norte-Sul no início da Primavera, Sul-Norte no início do Verão) navegaram frotas; trocaram-se tâmaras, especiarias e ouro por madeira, marfim e escravos; misturaram-se raças; desenvolveu-se uma lingua; implantou-se uma religião; gerou-se uma cultura costeira...
O som da ondulação nas rochas e na areia era tão límpido e delicado quanto o eram a água e a calmaria daquela manhã de maré baixa. Ghanjah e Baghlah conduziam o barco por entre os baixios até nós, que aguardávamos, com a água pelos tornozelos, junto ao baluarte Norte da fortaleza de D. Sebastião, na Ilha de Moçambique. Em pé, equilibrados entre a borda e os bancos, empurravam o veleiro de velas arreadas com varas de três metros, cravando-as compassadamente no fundo do mar. Djambo estava connosco na margem e ia instruindo gestualmente os homens dos paus. Foi com ele que acertei o negócio antes do pequeno almoço: 1000 meticais para nos levar e trazer, de barco à vela, à Ilha de Goa, um ilhéu faroleiro a umas cinco milhas de distância.
Subimos a bordo e Djambo assumiu de imediato a posição de comando do leme, enquanto que Ghanjah e Baghlah continuavam o jogo do vara-pau. Logo que a profundidade dos rochedos e corais deixou de ameaçar o casco, içámos a vela. Uma leve brisa foi suficiente para enfunar a dita-cuja e fazer-nos progredir suavemente numa bolina larga.
A hierarquia da tripulação esteve sempre bem definida. Djambo "capitaneava" e dava as ordens que, Ghanjah, "o imediato" e Baghlah "o grumete", seguiam sem hesitações. Djambo era de carácter reservado, mas gostava de ser ele a responder às minhas questões, mesmo quando estas eram dirigidas aos outros tripulantes. Ghanjah mostrou-se um envergonhado de gargalhada fácil e Baghlah revelou um facies carrancudo interessante. Entre eles falavam swahili e connosco um português altamente simplificado e gestual. Não lhes averiguei das idades (e é sempre arriscado adivinhá-las em indivíduos de raça negra) mas não creio que estes rapazes tivessem mais do que vinte anos. Baghlah era decerto ainda um adolescente.
Se em Djambo apreciei a sua responsabilidade e profissionalismo no cumprimento do acordado, já Ghanjah me conquistou tanto pela sua simplicidade de trato, como pela força esguia das suas manobras marinheiras. Todavia, foi o enigmático Baghlah o personagem mais fascinante. Sempre compenetrado nas suas tarefas, nunca saiu do seu posto. De regresso à Ilha de Moçambique, nesse dia ao anoitecer, passámos pela praia e lá estava ele, fundeado ao largo, único tripulante do "navio" a acenar-nos "Olá"!
O vento corria pobre e os dois swahilis de ranking mais baixo, remavam. Num dos bordos, Djambo trocou de lugar com Baghlah com o intuito de aumentar a cavalagem do remar e disse: "é pra chegar lá!...Agora!" No bordo seguinte ofereci-me eu para remar. Passados dez dias, enquanto escrevo estas palavras, acaricio a cicatriz no meu polegar direito resultante daquela minha oferta - ao fim de 10 remadas já tinha feito uma bolha que ao cabo de 20 já estava rebentada.
a calmaria da maré baixa, Baghlah e o jogo do empurra, Baghlah e Djambo; a tripulação: Djambo, Ghanjah e Baghlah; o enigmático Baghlah fundeado ao largo
Dhow. É este o nome destas embarcações de tradição árabe, cuja principal característica é a sua armação vélica e a forma triangular destas. São barcos variáveis na sua dimensão, desde simples canoas escavadas de um tronco de árvore com um flutuador lateral (tipo catamarã), a veleiros de complexos cascos de madeira com 15 metros de comprimento e capacidade para 30 tripulantes.
O dhow onde seguiamos deveria medir aí uns 8 metros e era incrivelmente rústico. Suspeito que as ferramentas que o construíram seriam extremamente rudimentares. Poucas serras passaram por ali. Praticamente, não existem samblagens (encaixes) entre as peças de madeira constituintes do casco. Chamar tábuas às placas que cobrem o esqueleto do bicho, e que nos amparam da água, é um "eufemismo"! Tudo foi pregado, umas coisas em cima das outras. As peças curvas, tão necessárias ao hidrodinamismo das formas do barco, são autenticamente ramos de árvore contorcidos (escolhidos a dedo os que melhor se adaptaram à função desejada). Esta rudeza construtiva deveria resultar num conjunto grotesco mas, surpreendente, não resulta. O barco é equilibrado, elegante mesmo e cumpre decerto as formas "regulamentares" dos standards da região. Na minha cabeça penso que este barco já deve ser bastante antigo e fico boquiaberto e desconfiado quando Ghanjah me diz que tem 2 anos, que o construiu ele próprio em 3 meses, que deu muito trabalho e que o fez maior para poder levar mais turistas, porque os dhows da pesca não precisam de ser tão grandes.
Em vagarosos ziguezagues fomo-nos aproximando da Ilha de Goa e, com ela, novamente de baixios. De vela arreada, repetia-se o processo das varas, só que desta feita dificultado pelas vagas de mar aberto que, apesar da calmaria, nos balançavam pronunciadamente. A manobra parecia arriscada, mas a tripulação fez ponto de honra em nos deixar mesmo na areia. Lá avançávamos, habilmente serpenteando por entre as rochas, até esse objectivo. Cumprido!
Dos passageiros, só a inglesa Becky, com quem partilhámos o aluguer da barcaça, não estava radiante - enjoou valentemente! Ali chegámos, movidos por forças motrizes elementares, à mercê de saberes tão velhos apreendidos por swahilis tão jovens...
Estas travessias oceânicas, que se estenderam da Índia ao Sul de África (os descobrimentos Árabes) revelaram, seis séculos antes das nossas caravelas, uma astúcia marinheira muito avançada. Interessante e ao mesmo tempo desolador é que, passados 12 séculos, a cultura swahili persiste, mas como que estagnada no tempo (não se efectuam as mesmas rotas comerciais de outrora mas pratica-se uma economia de subsistência baseada, obviamente, na pesca).
Desde o século XVI, os swahilis "levaram" com portugueses, ingleses, holandeses e alemães, vindos de terra e de mar, e mantiveram-se impenetráveis na sua identidade. Isto para um povo que resulta da mistura da raça árabe com a africana, diz algo sobre o interesse que a cultura ocidental por aqui despertou: "com esses não nos misturamos nós!".
no lago Malawi: um elegantíssimo dhow de duas velas, uma canoa de tronco, um dhow com velas de sacos de arroz ao amanhecer; a rusticidade do nosso dhow; a chegada à Ilha de Goa e a vista do farol sobre o ilhéu com a Ilha de Moçambique ao fundo
2 comentário(s):
espectacular. tudo, como o viveste, como o escreveste e, decerto, como o recordas hoje. Decidi comentar este post (nao posso comentar todos..) porque tambem eu sei bem o que é olhar as velas brancas do dhows que passam de manha para a pesca e regressam horas depois cheios de peixe..sao magicos..e tambem eu enjoei perdidamente. Devo ser a Becky reencernada! (mas sou um gajo. vergonhoso!!). fiquem bem, vou ler mais! Luis
São jangadas? Ou: as velas das "dow" são como as das jangadas brasileiras?
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Jangada)
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