44. NA RESTHOUSE WILL SANJEWE, EM LICHINGA
O despertador tocou às 4:10 da manhã. Queríamos sair cedo para assim apanharmos um dos chapas que diariamente rumam a Cuamba e que começam a sair pelas 4:30.
Levantei-me, acendi a luz do quarto, vesti-me e calcei-me. A Jota estava ainda na cama quando, alguém bate à porta. Deviam ser umas 4:20. Pensei que era o segurança da pensão a avisar-nos da saída eminente de um chapa (um alarmismo recorrente nas gentes de aqui, a que já nos vamos habituando). Entreabro a porta e sou surpreendido pela visão de uma pistola, bem junto da minha cara, na mão direita de um homem prestes a iniciar um gesto silencioso mas ameaçador. Reajo instintivamente e em terror. Estou tão perto da pistola que num grito “Não!” me lanço ao homem, segurando-lhe a mão armada e empurrando-o violentamente pelo estreito corredor afora! Durante todo este percurso de cinco ou seis metros em que nos debatemos corpo a corpo pelo corredor, olhei sempre o cano na pistola, tentando manter-me esquivo do seu alcance em caso de disparo. Não sei descrever como nos despegámos, apenas recordo que no fim do corredor o assaltante se retirou em fuga por uma antecâmara. A Jota, que entretanto tinha saltado da cama e semi-nua corrido o corredor nas minhas costas, vendo-me solto do homem, alerta-me para regressarmos rapidamente ao quarto.
Fechamo-nos à chave. Sento-me na cama a hiperventilar. Entre nós, tentamos perceber os acontecimentos e decidir um rumo de acção (a Jota não tinha visto a arma e pensava-me arrastado pelo malfeitor). Apesar dos gritos (meus e da Jota) que sonorizaram os 5 segundos que deve ter durado a cena, nos minutos seguintes não se ouviu vivalma. Segurança ou hóspedes...népias.
Pensamos em tudo. Será um ataque concertado com o(s) responsável(eis) da pensão? Telefonamos à polícia? O telemóvel tem rede. Não temos número. Talvez o lonely planet tenha o geral de Maputo. Não tem. A Janela tem grades. Não podem entrar por lá, mas também nós não podemos sair. Se forçarem a porta arrastamos a cama contra ela. Resolvemos arrumar a toda a bagagem e esperar o clarear do dia. Fechamos a luz.
Pelas 4:40 era altura de agir. Abro a porta do quarto e saio de canivete suíço em punho, enquanto a Jota se barrica novamente no quarto com as bagagens. Movimento-me rapidamente. Pelo caminho até à saída não vejo ninguém e encontro na recepção o segurança a dormir enrolado num cobertor. Acordo-o. Relato-lhe sucintamente o sucedido ao que ele, parecendo surpreendido, responde “não fui eu...”. Peço-lhe que me acompanhe até ao quarto. De volta ao corredor do incidente, examinamos a antecâmara por onde saiu o assaltante e verificamos que se liga a um pátio exterior e que o portão não tem fechadura. O segurança desculpa-se. “Foi por aqui que deve ter entrado, não tem cadeado, tem que se fechar isto, nunca tinha acontecido antes”. Nem quero saber mais, voltamos ao quarto onde a Joana nos esperava de sobreaviso. Mochilas às costas e escoltados pelo segurança saímos para a rua à procura dos chapas para Cuamba. Não queremos ficar um segundo mais por ali. Percorremos 30 metros pela rua do mercado e logo aparece uma hiace com o cobrador empoleirado gritando “Cuamba, Cuamba!”. Fazemos sinal, inquirimos do preço e saltamos lá para dentro, despedindo-me com desdém do infeliz segurança da pensão.
A realidade é que nunca saberemos o que de facto de passou naquela madrugada. Terá o segurança sido conivente? Ou cúmplice terá sido o taxista que nos transportou de Metangula e que simpaticamente nos recomendou aquela pensão e sabia o número do nosso quarto? De desconfiar foi também o hóspede que na noite anterior nos bateu à porta “por engano”. Estes cenários conspirativos não nos apagam a certeza que fomos alvos escolhidos pela nossa condição de brancos/estrangeiros suficientemente ricos de bens ou dinheiro e portanto merecedores de arriscar aquela manobra.
Para nossa sorte, a qualidade do plano e execução do ataque não abona do profissionalismo do(s) assaltante(s). Porquê esperar que a luz do quarto estivesse acesa para bater à porta? Seríamos mais surpreendidos se estivéssemos a dormir. Como é que um homem armado se deixa enxotar com uns empurrões? Pode muito bem ter sido uma coisa de um amadorismo tal que o perigo nunca foi assim tão eminente.
Em Cuamba, notificámos a autoridade. Fomos acolhidos com compreensão e razoabilidade pelo chefe da polícia, o que nos sossegou bastante. À nossa frente, comunicou de imediato com seu congénere de Lichinga para este investigar a Resthouse Will Sanjewe e assim evitar futuros incidentes. Recordo-o a relatar o acontecido ao colega pelo telemóvel e referir-se a “um cidadão armado”... estranha forma de cidadania.
Para nós, as consequências práticas deste percalço foram nenhumas. As físicas poucas (uns arranhões e nódoas negras dos encontros nas paredes do corredor). As psíquicas nem tanto. Essas, marcaram (e marcarão decerto) pontos. Sabemos é que temos de viver com elas.
Como preparação para esta viagem tinha-me consciencializado duma eventualidade deste tipo mas sempre numa lógica de não resistência: “Podes levar tudo, não nos faças é mal por favor”. Assusto-me quando penso na minha reacção instintiva de agressão. Foi-me novidade. Senti-me pela primeira vez a lutar pela (nossa) vida e fi-lo com todas as minhas forças, como um animal.
Levantei-me, acendi a luz do quarto, vesti-me e calcei-me. A Jota estava ainda na cama quando, alguém bate à porta. Deviam ser umas 4:20. Pensei que era o segurança da pensão a avisar-nos da saída eminente de um chapa (um alarmismo recorrente nas gentes de aqui, a que já nos vamos habituando). Entreabro a porta e sou surpreendido pela visão de uma pistola, bem junto da minha cara, na mão direita de um homem prestes a iniciar um gesto silencioso mas ameaçador. Reajo instintivamente e em terror. Estou tão perto da pistola que num grito “Não!” me lanço ao homem, segurando-lhe a mão armada e empurrando-o violentamente pelo estreito corredor afora! Durante todo este percurso de cinco ou seis metros em que nos debatemos corpo a corpo pelo corredor, olhei sempre o cano na pistola, tentando manter-me esquivo do seu alcance em caso de disparo. Não sei descrever como nos despegámos, apenas recordo que no fim do corredor o assaltante se retirou em fuga por uma antecâmara. A Jota, que entretanto tinha saltado da cama e semi-nua corrido o corredor nas minhas costas, vendo-me solto do homem, alerta-me para regressarmos rapidamente ao quarto.
Fechamo-nos à chave. Sento-me na cama a hiperventilar. Entre nós, tentamos perceber os acontecimentos e decidir um rumo de acção (a Jota não tinha visto a arma e pensava-me arrastado pelo malfeitor). Apesar dos gritos (meus e da Jota) que sonorizaram os 5 segundos que deve ter durado a cena, nos minutos seguintes não se ouviu vivalma. Segurança ou hóspedes...népias.
Pensamos em tudo. Será um ataque concertado com o(s) responsável(eis) da pensão? Telefonamos à polícia? O telemóvel tem rede. Não temos número. Talvez o lonely planet tenha o geral de Maputo. Não tem. A Janela tem grades. Não podem entrar por lá, mas também nós não podemos sair. Se forçarem a porta arrastamos a cama contra ela. Resolvemos arrumar a toda a bagagem e esperar o clarear do dia. Fechamos a luz.
Pelas 4:40 era altura de agir. Abro a porta do quarto e saio de canivete suíço em punho, enquanto a Jota se barrica novamente no quarto com as bagagens. Movimento-me rapidamente. Pelo caminho até à saída não vejo ninguém e encontro na recepção o segurança a dormir enrolado num cobertor. Acordo-o. Relato-lhe sucintamente o sucedido ao que ele, parecendo surpreendido, responde “não fui eu...”. Peço-lhe que me acompanhe até ao quarto. De volta ao corredor do incidente, examinamos a antecâmara por onde saiu o assaltante e verificamos que se liga a um pátio exterior e que o portão não tem fechadura. O segurança desculpa-se. “Foi por aqui que deve ter entrado, não tem cadeado, tem que se fechar isto, nunca tinha acontecido antes”. Nem quero saber mais, voltamos ao quarto onde a Joana nos esperava de sobreaviso. Mochilas às costas e escoltados pelo segurança saímos para a rua à procura dos chapas para Cuamba. Não queremos ficar um segundo mais por ali. Percorremos 30 metros pela rua do mercado e logo aparece uma hiace com o cobrador empoleirado gritando “Cuamba, Cuamba!”. Fazemos sinal, inquirimos do preço e saltamos lá para dentro, despedindo-me com desdém do infeliz segurança da pensão.
A realidade é que nunca saberemos o que de facto de passou naquela madrugada. Terá o segurança sido conivente? Ou cúmplice terá sido o taxista que nos transportou de Metangula e que simpaticamente nos recomendou aquela pensão e sabia o número do nosso quarto? De desconfiar foi também o hóspede que na noite anterior nos bateu à porta “por engano”. Estes cenários conspirativos não nos apagam a certeza que fomos alvos escolhidos pela nossa condição de brancos/estrangeiros suficientemente ricos de bens ou dinheiro e portanto merecedores de arriscar aquela manobra.
Para nossa sorte, a qualidade do plano e execução do ataque não abona do profissionalismo do(s) assaltante(s). Porquê esperar que a luz do quarto estivesse acesa para bater à porta? Seríamos mais surpreendidos se estivéssemos a dormir. Como é que um homem armado se deixa enxotar com uns empurrões? Pode muito bem ter sido uma coisa de um amadorismo tal que o perigo nunca foi assim tão eminente.
Em Cuamba, notificámos a autoridade. Fomos acolhidos com compreensão e razoabilidade pelo chefe da polícia, o que nos sossegou bastante. À nossa frente, comunicou de imediato com seu congénere de Lichinga para este investigar a Resthouse Will Sanjewe e assim evitar futuros incidentes. Recordo-o a relatar o acontecido ao colega pelo telemóvel e referir-se a “um cidadão armado”... estranha forma de cidadania.
Para nós, as consequências práticas deste percalço foram nenhumas. As físicas poucas (uns arranhões e nódoas negras dos encontros nas paredes do corredor). As psíquicas nem tanto. Essas, marcaram (e marcarão decerto) pontos. Sabemos é que temos de viver com elas.
Como preparação para esta viagem tinha-me consciencializado duma eventualidade deste tipo mas sempre numa lógica de não resistência: “Podes levar tudo, não nos faças é mal por favor”. Assusto-me quando penso na minha reacção instintiva de agressão. Foi-me novidade. Senti-me pela primeira vez a lutar pela (nossa) vida e fi-lo com todas as minhas forças, como um animal.
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