09 novembro 2006

54. ANGOLA SEM LÁ ESTAR

Em Angola não estivemos mas, de fugida, fomo-nos encontrando com ela.


Na piscina da casa de hóspedes Rivendell, em Windhoek, fomos visitados em português pelo angolano Rui Quimio de São Paulo. O ainda jovem Rui estuda e pratica artes visuais em Windhoek, onde está radicado há alguns anos. Até lá chegar passou por uma formação em Cuba e já conta no seu c.v. com diversas exposições individuais e colectivas, inclusive nos EUA e na Europa. Trabalha principalmente em gravuras a preto e branco sobre linóleo, das quais nos mostrou uma selecção. Os temas variam em torno da cultura africana, da natureza, dos animais, dos costumes. Inquiri-o sobre uma gravura em especial, onde figurava uma máquina que consumia pessoas, por assim dizer. Respondeu-me que era alusiva a um projecto de construção de uma barragem no norte da Namíbia com o intuito de promover o desenvolvimento agrícola das populações e de como, na opinião dele, se corre o risco de apagar identidade de um povo caçador/recolector - os bosquímanos (bushman).
Apesar de não lhe termos comprado nenhuma gravura, oferecemos-lhe a explicação sobre o fabrico do linóleo, que ele julgava ser um plástico derivado do petróleo e cuja notícia de que afinal se trata de um composto de materiais naturais o deixou muito satisfeito. Para os interessados, aqui ficam os seus contactos online:
http://www.savagewords.com quimio_rui@yahoo.com





Durante o nosso automobilizado périplo pelo centro/norte da Namíbia, parámos em Grootefontein para reabastecer a logística no supermercado local. Nas prateleiras saltaram-nos à vista produtos e rótulos familiares (Atum General e Bom Petisco, latas de conserva Compal, Água das Pedras), mas a gratificação maior surgiu no momento de pagar quando fomos simpaticamente abordados em português pela senhora da caixa. O seu nome não consta deste registo mas o sorriso e a alegria desta angolana (já agora o profissionalismo também) foram, orgulhosamente, por nós notados.


Ainda no decorrer dos 2200 Km da volta à Namíbia, na noite da minha depressão em consequência do já relatado "acidente de automóvel contra as pedras", jantámos no restaurante do Lodge Etosha Gateway, onde acampámos. A refeição foi cara e péssima, sobretudo para mim que, praticamente, nada comi. Pior que a alimentação estava o ambiente, cujos responsáveis pelo Lodge reclamavam de pitoresco - um grupo de danças e cantares africano entretinha os comensais. Que sofrimento foi ouvi-los entoar um desafinadíssimo emplastro jamaicano "we are one family" à medida que se bamboleavam desajeitadamente pelo espaço apertado entre as mesas. A agonia chegou momento de aplaudir e observar o olhar embevecido de alguns dos nossos, já envinhados, companheiros de restaurante...terrível!
Todo este à parte descontextualizado só fará sentido quando referir que o criado que nos serviu este desafortunado repasto era angolano, se chamava Francisco, e logo que percebeu que éramos portugueses deu dois chochos na cara da Jota e da Guida. Foi o contraponto positivo de toda aquela malfadada noite.
Francisco, como muito outros compatriotas, emigrou de próximo do Lubango para a Namíbia, fugindo à guerra na procura de melhores condições de vida. Veio só, mas mais tarde trouxe a família próxima deixando, claro, muitos parente e amigos "na terra".
Falámos, entre as idas e as vindas dos pratos, do péssimo estado das estradas do Sul até Lubango, da dificuldade em obter visto para visitar Angola entrando por terra e dos nossos planos de atravessar a Zâmbia. Francisco falava português com alguma dificuldade e socorria-se de interjeições: "Xiii tás ja ver né? Na Zâmbia é igual yá! Uns gaijo pega numá farda do tempo da guerra, do avô, pra passá po militar! Vê turista e multa. Vais ja ver...100 dolar! Corrupção yá yá!"


Quando saímos da Namíbia, via faixa de Caprivi, um sul-africano ao perceber que éramos portugueses e ao nos ver entrar em Bagani, perguntou-nos se tínhamos ido visitar a família. O "privilégio" de estarmos três dias presos no Ngepi Camp, fechou-nos a possível relação com esta comunidade de portugueses, vinda de Angola, ali estabelecida no negócio das relações comerciais desde os tumultuosos anos de 1975.


Estes fortuitos mas sentimentais encontros com Angola deixaram-nos com pena de passar ao lado desta poderosa ex-colónia. Ali tão perto e no entanto tão longe pela quase impossibilidade burocrática da obtenção do visto. A mim, em particular, ficou-me o amargo de boca de ter estado próximo do local onde meu avô paterno perdeu a vida, junto com outras 17 pessoas, no desastre de aviação do Chitado, ali bem junto da fronteira sul de Angola, a 10 de Novembro de 1961. Um ano depois foi inaugurado um monumento no local do acidente. Não o visitei desta vez, mas ainda o espero fazer, um dia mais tarde.
O dia de amanhã, sexta-feira, o mesmo dia da semana de 1961, assinala precisamente 45 anos passados sobre o acidente. Também amanhã tomaremos um avião para Maputo e sinto que, voando nesse dia, exorcizarei as superstições e prestarei uma casual homenagem à memória de meu avô.

3 comentário(s):

Anonymous Anónimo disse...

Curioso. Também tenho ideia de ter encontrado em Windhoek um angolano, a trabalhar na hotelaria, que falava deficientemente português (e creio que, em contrapartida, um inglês perfeito). Mas, a propósito, não me esqueço é de um casal de comerciantes portugueses, com loja posta na África do Sul, que encontrei em Swakopmund. Tinham vindo ver as dunas do Namibe. Para o efeito atravessaram meia África de jipe sozinhos. Perguntei-lhes se não era perigoso, «as estradas desertas, e tal e coisa...». «Não, nem por isso», respondeu o homem, «aliás, ando sempre com uma arma no carro e outra no casaco».

1:19 da manhã  
Anonymous José João Marques Lourenço disse...

Quero deixar apenas um pequeno comentário. Talvez pelo meu nome e por memórias de família ele se perceba.
Se não, uma dica, talvez em conversas de família, algumas delas dolorosas, tenha ouvido falar do meu Avô materno, João de Oliveira Marques (tenente-coronel, para respeitar a sua tradição militar)...
A sua experiência, presenciando esse local, que de forma tão trágica, marca o imaginário das nossas famílias, e a forma como descreve esse momento, ligou-me também a mim, mais uma vez à memória que posso ter de um dos familiares que mais gostaria de ter conhecido mas o destino não me o permitiu.
Bem haja!
Espero que a viagem para Maputo tenha contribuído para honrar a memória de todos os que faleceram naquele dia.
P.S.: Desculpe a minha ousadia, mas tenho que o dizer... O relatório oficial daquele dia falseia o que realmente se passou, mas temos que viver com isso.
De qualquer forma, foi uma surpresa extremamente agradável saber que existem outras pessoas, segunda geração daquele malogrado momento, com uma saudade imensa de quem ali ficou.
Fique bem!

12:03 da manhã  
Blogger Quico (Francisco Freire) disse...

Caro José,
O meu pai, João Freire, deixa-lhe a seguinte mensagem:

"Conheci bem o avô do José João Marques Lourenço, e o tio João Manuel.
Gostava de o contactar por Email, directamente.
Meu endereço: joao.freire@mail.telepac.pt "

11:25 da tarde