68. WE(O)MAN
Nós os homens, achamo-nos mais fortes que o sexo fraco. Na força medida em newtons verificar-se-á esta assumpção mas força, num sentido mais etéreo, é cosa mentale e este post é um tributo à têmpera das mulheres que viajam sozinhas por esta África!
“And thanks a lot for the bandage, you guys”. Foram estas as últimas palavras de Coline, quando nos despedimos. Francesa, 26 anos, jurista, auto-desempregada ao serviço da ONU e manca de uma perna (temporariamente, espero).
Quando a conhecemos no ferry-boat Ilala já Coline coxeava há uma semana, consequência de um desafortunado acidente de viagem. Ao descer de um mini-bus com as suas mochilas pesadas colocou mal o pé no degrau e torceu o tornozelo com uma tal violência que se estatelou no chão, perdendo os sentidos durante 20 minutos. Esta contrariedade não a demoveu de continuar a gozar as suas seis semanas de férias viajando por cinco países da África Austral. Nem pensar! Desembaraçada e transpirando recursos, brincava com a condição negra e inchada do seu pé: “Today, disaster!...now I will stay on the beach and rest”. No dia anterior tinha massacrado o calcanhar já dorido com uma caminhada de 10 km pela Ilha de Likoma, e em chinelos! (as botas, doou-as algures no Zimbabué). “Tomorrow I’ll go again, I get bored when I stay two days in the same place. I have to keep moving. One day on the mini-buses, two days rest, that’s my rhythm”.
Coline tirou direito internacional e durante este último ano o seu trabalho foi defender alguns dos altos responsáveis acusados de genocídio nos tumultos de 1994 no Ruanda. O tribunal criminal internacional da ONU especialmente criado para julgar estes crimes está sedeado em Arusha na Tanzânia, a sua residência antes do desanuviamento das férias. “The judges are very bad, there is no justice, the sentences are already decided, everybody will get ‘life’, the political pressure from the new government in Rwanda and the international community is very strong…I was fed up, now I have to find another job”…Coline aturou o sistema durante um ano. Desempregou-se e foi viajar.
Dez dias depois da despedida, voltámos a encontrá-la em Pemba. Avistámo-la num bus e de longe ainda trocámos umas palavras: -”How’s your foot?”-“It’s going much better!”-“when do you leave?”-“Tomorrow? Me too, have to keep moving...” E lá foi, com a nossa ligadura a amparar-lhe o caminhar.
Das várias fêmeas que compareceram no casting, elegi a Coline para protagonizar a Scarlett O'Hara deste post. O papel de Melanie Hamilton atribui-o a Becky. Inglesa, 21 anos, chefe-pasteleira, auto-desempregada ao serviço dum restaurante chique de Manchester e manca das duas pernas (piadinha paralela). Em sentido figurado, refiro-me à sua inabilidade natural. Se Coline emanava desenvoltura, Becki manifestava o oposto. Introvertida, indecisa, pouco expedita, aparentava uma (in)preparação latente para as exigências duma viagem a solo por África.
Em Cuamba, notámo-la sombria a cirandar pelas ruas (é difícil não reparar em brancos no meio de tantos pretos). Várias vezes nos cruzámos com ela e nunca nos olhou nos olhos até que um momento de aflição a fez revelar-se: -“Sorry, this is going to sound really weird but I’m 10 meticais (0.30 euros) short in order to buy the train ticket to Nampula, and I don’t want to travel third class. Can you borrow me?”-“Sure, no problem.” -“Thanks a lot you guys, when we get to Nampula I will pay you back”. Como ainda era véspera da partida e lhe perspectivámos um jejum nas próximas 30 horas, sugerirmos-lhe: -”You know, there’s an ATM machine just around the corner...”. Ela não sabia, como não sabia umas quantas outras coisas úteis em Moçambique – exprimir-se em Português, por exemplo. A partir de aí, de Cuamba até à Ilha de Moçambique, foi nossa companheira de viagem, com visíveis vantagens para o lado dela.
Becky escolheu como destino da sua primeira grande viagem África. Do Egipto até Madagáscar, em nove meses. Porquê? –“The Nature, the animals...” E lá foi, com alguns conselhos nossos a ampararem-lhe o caminhar.
Coline e Becky. Tão diferentes e tão iguais na atitude corajosa de lá estarem sós, naquelas circunstâncias, na força mental. Pena é esta firmeza feminina não contaminar mais o espírito de muitas mulheres africanas, tão estigmatizadas que estão com tantos flagelos: mães solteiras, alimentadoras da família, poligamia, mutilações genitais, apedrejamentos... ai we(o)man!
Coline, Becky e a condição feminina em África nas portas das casas de banho do Mango Drift
“And thanks a lot for the bandage, you guys”. Foram estas as últimas palavras de Coline, quando nos despedimos. Francesa, 26 anos, jurista, auto-desempregada ao serviço da ONU e manca de uma perna (temporariamente, espero).
Quando a conhecemos no ferry-boat Ilala já Coline coxeava há uma semana, consequência de um desafortunado acidente de viagem. Ao descer de um mini-bus com as suas mochilas pesadas colocou mal o pé no degrau e torceu o tornozelo com uma tal violência que se estatelou no chão, perdendo os sentidos durante 20 minutos. Esta contrariedade não a demoveu de continuar a gozar as suas seis semanas de férias viajando por cinco países da África Austral. Nem pensar! Desembaraçada e transpirando recursos, brincava com a condição negra e inchada do seu pé: “Today, disaster!...now I will stay on the beach and rest”. No dia anterior tinha massacrado o calcanhar já dorido com uma caminhada de 10 km pela Ilha de Likoma, e em chinelos! (as botas, doou-as algures no Zimbabué). “Tomorrow I’ll go again, I get bored when I stay two days in the same place. I have to keep moving. One day on the mini-buses, two days rest, that’s my rhythm”.
Coline tirou direito internacional e durante este último ano o seu trabalho foi defender alguns dos altos responsáveis acusados de genocídio nos tumultos de 1994 no Ruanda. O tribunal criminal internacional da ONU especialmente criado para julgar estes crimes está sedeado em Arusha na Tanzânia, a sua residência antes do desanuviamento das férias. “The judges are very bad, there is no justice, the sentences are already decided, everybody will get ‘life’, the political pressure from the new government in Rwanda and the international community is very strong…I was fed up, now I have to find another job”…Coline aturou o sistema durante um ano. Desempregou-se e foi viajar.
Dez dias depois da despedida, voltámos a encontrá-la em Pemba. Avistámo-la num bus e de longe ainda trocámos umas palavras: -”How’s your foot?”-“It’s going much better!”-“when do you leave?”-“Tomorrow? Me too, have to keep moving...” E lá foi, com a nossa ligadura a amparar-lhe o caminhar.
Das várias fêmeas que compareceram no casting, elegi a Coline para protagonizar a Scarlett O'Hara deste post. O papel de Melanie Hamilton atribui-o a Becky. Inglesa, 21 anos, chefe-pasteleira, auto-desempregada ao serviço dum restaurante chique de Manchester e manca das duas pernas (piadinha paralela). Em sentido figurado, refiro-me à sua inabilidade natural. Se Coline emanava desenvoltura, Becki manifestava o oposto. Introvertida, indecisa, pouco expedita, aparentava uma (in)preparação latente para as exigências duma viagem a solo por África.
Em Cuamba, notámo-la sombria a cirandar pelas ruas (é difícil não reparar em brancos no meio de tantos pretos). Várias vezes nos cruzámos com ela e nunca nos olhou nos olhos até que um momento de aflição a fez revelar-se: -“Sorry, this is going to sound really weird but I’m 10 meticais (0.30 euros) short in order to buy the train ticket to Nampula, and I don’t want to travel third class. Can you borrow me?”-“Sure, no problem.” -“Thanks a lot you guys, when we get to Nampula I will pay you back”. Como ainda era véspera da partida e lhe perspectivámos um jejum nas próximas 30 horas, sugerirmos-lhe: -”You know, there’s an ATM machine just around the corner...”. Ela não sabia, como não sabia umas quantas outras coisas úteis em Moçambique – exprimir-se em Português, por exemplo. A partir de aí, de Cuamba até à Ilha de Moçambique, foi nossa companheira de viagem, com visíveis vantagens para o lado dela.
Becky escolheu como destino da sua primeira grande viagem África. Do Egipto até Madagáscar, em nove meses. Porquê? –“The Nature, the animals...” E lá foi, com alguns conselhos nossos a ampararem-lhe o caminhar.
Coline e Becky. Tão diferentes e tão iguais na atitude corajosa de lá estarem sós, naquelas circunstâncias, na força mental. Pena é esta firmeza feminina não contaminar mais o espírito de muitas mulheres africanas, tão estigmatizadas que estão com tantos flagelos: mães solteiras, alimentadoras da família, poligamia, mutilações genitais, apedrejamentos... ai we(o)man!
Coline, Becky e a condição feminina em África nas portas das casas de banho do Mango Drift
4 comentário(s):
espectacular quico. tens uma sensibilidade fora do comum. nao só observas as duas mulheres, como reflectes sobre a sua condição, como as comparas. depois, observas as africanas, e reflectes tambem sobre a sua condição. e depois comparas de novo. no fim de tudo, escreves toda essa cadeia de pensamentos, que nao sao senao pensamentos que vais tendo ao longo da viagem.
pela leitura, depreendo que nao é algo que faças para escrever, mas sim algo que acompanha as tuas observacoes em viagem, e que sentes a necessidade de pôr em palavras quando chegas.
muito bom este blog. tenho recomendado em todas as conversas.
Gostei mais da forma como assinalam "W.C dele" e "W.C dela"!
Pois é, por cá sempre somos mais civilizados! DEFINITIVAMENTE mais civilizados! Usamos símbolos, logos, bonecos de pano, design para indicar os WC.
Na divisão de tarefas e futebol devemos estar ao mesmo nível muitas vezes.
necessario verificar:)
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