16 novembro 2006

64. UM DIA EM MUMEMO

"Benfica! Benfica", ouvia-se de dentro da Hiace.
Não, não se efabulava o maior clube português, antes se anunciava o destino daquele autocarro colectivo.
Levantamos o braço em sinal de aceitação da direcção proposta. Entramos e… surpresa: lugares vazios. Arrancamos do centro de Maputo, defronte do Museu de História Natural, para a periferia, pela avenida Eduardo Mondlane acima.
Benfica, um agitado mercado suburbano fervilhante de cores, sons e cheiros castiços. Apeamo-nos. Começa o bombardeamento de ofertas de negócio: "Sumo! Bolacha! Castanha! Costa do Sol! Museu! Marracuene!". Enxotamos todas as outras e aceitamos esta última, um chapa com destino a Marracuene. Entramos e… sem surpresa: lugares ocupados. Apertamo-nos. Esperamos mais uns minutos enquanto se apertam mais uns quantos passageiros. Satisfeitos com o carrego, o motorista e o angariador decidem partir.
Avançamos pela principal saída Norte da cidade e que liga a capital ao resto do país. Asfalto recente, traçado melhorado. Resultado: uma estrada muito rápida e muito, muito perigosa. Faixas de rodagem são duas, mas se cabem três carros porquê não ultrapassar em qualquer lado? Aceleradores a fundo, curvas cortadas, velocímetros nos 150 km/h, o pão-nosso de cada dia. A evolução da tecnologia consumida até aos limites, porquê refrear?
Nós estávamos avisados para este particular panorama rodoviário (afinal o que faríamos nós numa Hiace a caminho de Marraquene?). O nosso objectivo era visitar o trabalho de um amigo. O trabalho sim, porque o amigo, esse já não se encontrava visitável naquele local. Passo a explicar, queríamos ver Mumemo. O que é isso? Mumemo é um bairro de realojados das cheias de 2000/2001, ‘aquelas‘ que deixaram 'meio Sul' de Moçambique sem casa. Localizado a 30 km de Maputo, Mumeno é uma operação de realojamento de 1700 famílias promovido pela Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição (ver site mumemo). O trabalho de um amigo? O amigo chama-se Miguel Mendes e é arquitecto. O trabalho foi ministrar um curso de construção com terra (ver blog mumemo) e de formação de formadores que decorreu entre Maio e Agosto de 2006 e no qual foi construída uma edificação nas técnicas de Taipa e BTC. O Miguel instruiu-nos da maneira de chegar a Mumemo: "Pedes ao motorista para te deixar no bairro da casa branca, que ninguém conhece aquilo por Mumemo".
A Hiace parou. "Casa branca é aqui". Descemos e olhamos em volta, contentes por nos encontrarmos intactos. Casa, nem vê-la, nem branca nem de cor alguma, apenas um entroncamento com uma estrada de terra. A Hiace segue o seu destino e deixa-nos. Recordo as palavras do Miguel: "tomas a estrada de terra sempre em frente e não chegues depois do anoitecer, é muita perigoso". Não sabemos a qualidade do perigo em referência, mas são 9.45 da manhã, portanto devemos estar 'em segurança'. Avançamos.
O caminho rasga uma vegetação verdejante por entre colinas. Vislumbram-se habitações por entre a mata. Cruzamo-nos com gente. "Bom dia... Bom dia...". Caminhamos há quinze minutos e continuo a não localizar esta paisagem na memória informática que tenho de Mumemo. Estaremos no sítio certo?
Mais dez minutos e estávamos.
Entramos na rua principal, a mesma estrada de terra agora ladeada por lotes de quinze metros por vinte, cada qual com uma pequena 'moradia' de oito metros por três, implantada ao centro. À frente, um pequeno jardim, atrás algum terreno. "Onde fica a casa dos voluntários?" inquirimos a uma senhora de alguidar na cabeça. "Por ali? Obrigado."
Reconhecemos a dita-cuja das fotos do site e mesmo ao lado, lá estava, o resultado prático dos quatro meses de estadia do Miguel - a casa de Terra.
Tendencialmente, preferimos visitar os sítios que queremos ver em registo low profile, sem alertas para a nossa presença. Em África, por razões raciais - diga-se sem constrangimentos - na maior parte dos locais esta preferência é uma impossibilidade a não ser que nos transforme-mos em mosquinhas (tantas vezes foi este o meu desejo jornalístico). No caso da visita a Mumemo, contrariámos esta tendência logo à partida uma vez que, através do Miguel, avisámos previamente as gentes locais das nossas intenções, facto que resultou numa comitiva de recepção logo que assentámos praça na casa dos voluntários.
“Alexandre? Olá como está, muito prazer. O Miguel falou-nos de si, que foi o melhor aluno do curso”. Sentamo-nos no alpendre. Trocamos recados do, e para o, Miguel. Conhecemos Paulo, professor de electrotecnia na escola profissional de Mumemo e que também frequentou a formação. Visitamos a casa. Não está ainda totalmente acabada, faltam alguns acabamentos, mas emana dignidade. Reflecte trabalho árduo, técnicas arcaicas mas apuradas, e sobretudo boa vontade.
“Vamos visitar o bairro? Comecemos pela escola profissional” propõe-nos o Alexandre. Somos logo empurrados para o gabinete do director da escola, com quem conversamos sobre as actividades da mesma: “Com os nossos cursos tentamos formar profissionais, mas como encontrar emprego é difícil, incentivamos os alunos a criarem os próprios negócios no final (mecânicos, electricistas, serralheiros, carpinteiros, etc).” Damos uma guided tour por todos os recantos da escola. Despedidas calorosas.
À saída junta-se à comitiva Manuel Monteiro, engenheiro agrónomo, voluntário português em Mumemo por um ano, com quem já tínhamos falado ao telefone: “Então e como está a agricultura por aqui? - Oh, o problema é a rega. Sem água cultiva-se o que dá… milho, repolho, mandioca. Eu vim para ‘fazer hortícolas’ e só vou ter o necessário sistema de rega a funcionar quando me for embora…”
Continuamos a caminhar pelo bairro. Alexandre é o anfitrião: ”Aqui é o Centro de Convívio…aqui o Centro de Saúde…ali a Casa da Irmãs, vamos ver a minha casa”.
As condições das casas do bairro de Mumemo, são consideravelmente distintas das da casa de Terra, para pior claro. A tipologia é única: três divisões, uma cozinha, uma sala, um quarto. Instalações sanitárias não existem. Água, vai-se buscar à fonte. Construtivamente, as paredes são de blocos de betão vazados e as coberturas de chapa sem isolamento térmico – quentinhas no Verão portanto.
“ Entrem, vejam o meu certificado de curso”. A casa é muito pequena e qualquer mesa ou cama lhe afoga o espaço. Contudo, apesar de cheia está impecavelmente arrumada.
Seguimos para o mercado, um enorme espaço coberto com apenas algumas bancas ocupadas onde se vendem bens alimentícios frescos. “Estes produtos são produzidos aqui? – Não, os comerciantes compram-nos nos mercados de Maputo”.
Próxima paragem: escola primária. Para nos receber é logo alertado o director da escola: “Estamos em período de exames de fim de ano, muito trabalho, nós não estamos mal, temos turmas de 40/45 alunos, há professores que dão aulas a turmas de 70!”
De volta à casa dos voluntários: “Vamos ao almoço?” convida o Manuel. “Não estávamos à espera mas muito obrigado”. Sopa de feijão, frango assado, arroz de repolho, salada de alface e tomate.
No regresso a Maputo aproveitámos uma boleia numa pick up Toyota Isuzo, que estava ao serviço das irmãs. O trajecto fizemo-lo com o coração nas mãos. A cilindrada da Isuzo, o pé pesado e as ultrapassagens kamikazes do motorista agravaram o perigo eminente do percurso.
Em constante sobressalto rodoviário tentamos a custo desviar a atenção para a conversa do passageiro sentado no lugar do morto: ”Ele tem uma casa muito boa, fiz-lhe um projecto por 3000 contos. Na altura era dinheiro…vocês são arquitectos também? Muitos estrangeiros têm-se mudado para cá! É muito fácil fazer dinheiro, dois anos de trabalho e já estás, já és senhor do teu nariz...vêm aquele pavilhão? Fui eu que desenhei. E ali, vêm o cemitério? Antes era o paiol militar, e eu também participei na sua transferência para aqueles terrenos lá atrás…e gostaram de Mumemo? Fui eu que fiz aquilo tudo!”




a estrada da "casa branca" e a casa de BTC e Taipa; a estrada de Mumemo, a escola e o mercado




as casas de Mumemo; Alexandre, Paulo, o Director da escola profissional, Manuel Monteiro e o Director da escola primária

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