75. MZUNGU
Mzungu significa Branco em swahili, homem ou mulher Branco(a).
Eu sou mzungu e fui bem lembrado disso ao longo do norte remoto da nossa viagem. As crianças apontavam-mo com gritos estridentes entre o gozo, o susto e a pedinchice: “Mzungu! Mzungu! ”Em Moçambique, quando não era mzungu era Patrão – um resquício ainda difícil de apagar. Esta naturalidade com que se distinguem as pessoas pela raça até pode ser candidamente inocente mas não deixa de me ser perturbadora.
O Portugal de hoje, e em particular Lisboa, é um lugar cosmopolita no qual eu me sinto bem. A sopa da nossa sociedade mistura emigrantes, turistas, estudantes e nativos. O prato é salgado e às vezes azeda mas quando comparado com certas comidas estrangeiras... bem nos podemos regozijar com o nosso meltingpotezinho. É feio discriminar mas confesso que no meu interior sinto de maneira distinta a presença dos vários forasteiros que se povoam por cá. Menos comiseração por chineses ou brasileiros, mais compaixão pelos de Leste e pelos africanos. Estranho é que, ao cabo de pouco tempo em viagem por África e no contacto com as gentes de lá, esta afinidade foi por água abaixo. Rapidamente me tornei imune à degradação, à miséria e, infelizmente, também à simpatia – que, quando acontecia, na esmagadora maioria dos casos acabava por se revelar interesseira. Tentei ser sempre respeitoso e correcto para com as pessoas mas de sentimentos fui duro, impenetrável, calculista.
Recentemente, em conversa com um amigo ele argumentou que quando há tamanha desigualdade (económica e cultural) é difícil gerar-se uma empatia genuína nestas relações entre visitantes e visitados. Esta perspectiva é-me extremamente desanimadora e contesto-a com experiências próprias que tive noutros contextos semelhantes (com a hospitalidade dos nómadas mongóis por exemplo, ou mesmo numa outra África – Cabo Verde). Penso que nem sequer é uma característica continental, talvez uma cicatriz da velha questão da África Subsaariana.
A propósito e como exemplo desta dificuldade, incluo de seguida uma reflexão de Paul Theroux acerca do acto de gratificar pessoas (em África) por um serviço prestado – a gorjeta:
“-I smile; you give me money- […] Tipping confounds me because it is not a reward but a travel tax, one of the many, one of the more insulting. […] It is bad enough that people expect something extra for just doing their jobs; it is an even more dismal thought that every smile has a price.”
Os nossos 45 dias sprintando pelo Shackled Continent foram migalhas. Migalhas de tempo no outro tempo que por lá passa. Migalhas de espaço na imensidão que por lá corre. Migalhas de conhecimento na vastidão de cultura que lhe é merecida. Migalhas de importância no seu significado. Mas para mim, insubstituíveis migalhas.
O meu fim é um contraponto à rigidez racional da minha postura em viagem. Houve momentos em que baixei as defesas e a emotividade prevaleceu…
Windhoek, cinco e meia da tarde. Andamos rápido porque a noite aproxima-se e ainda temos um caminho longo até à segurança do hostel. Paramos junto à entrada de um beco estreito. O que nos faz estacar é uma sonância vinda do beco, vozes humanas em canto – música. Curiosos, avançamos. A música avança também. Deparamo-nos com um pátio ocupado por uma esplanada, um café. A maioria das mesas está vazia, apenas em duas delas estão sentadas pessoas, mzungus. A sua atenção está virada para cinco indivíduos, não mzungus, que alinhados em pé cantam à capela, sem acompanhamento de instrumentos musicais. Uma mzunga fotografa-os entusiasmadamente sem esconder um sorriso com todos os dentes. Terminam a canção introdutória. Um deles toma a palavra e apresenta a actuação. Vêm do Zimbabué, vão interpretar canções tradicionais e também imitar animais. Recomeçam a cantoria com a canção zulu Shosholoza (originalmente cantada por trabalhadores emigrantes da Rodésia viajando no comboio a caminho das minas de ouro no Transvaal, Joanesburgo). Vozes elásticas, graves e agudos combinados, ritmo e melodia, harmonia. Movimentos corporais e percussão orgânica.
Arrepios percorrem-me a espinha num sobe e desce. Os olhos humidificam-se.
São seis da tarde e a noite não espera. Vamo-nos embora que os predadores preparam-se.
Eu sou mzungu e fui bem lembrado disso ao longo do norte remoto da nossa viagem. As crianças apontavam-mo com gritos estridentes entre o gozo, o susto e a pedinchice: “Mzungu! Mzungu! ”Em Moçambique, quando não era mzungu era Patrão – um resquício ainda difícil de apagar. Esta naturalidade com que se distinguem as pessoas pela raça até pode ser candidamente inocente mas não deixa de me ser perturbadora.
O Portugal de hoje, e em particular Lisboa, é um lugar cosmopolita no qual eu me sinto bem. A sopa da nossa sociedade mistura emigrantes, turistas, estudantes e nativos. O prato é salgado e às vezes azeda mas quando comparado com certas comidas estrangeiras... bem nos podemos regozijar com o nosso meltingpotezinho. É feio discriminar mas confesso que no meu interior sinto de maneira distinta a presença dos vários forasteiros que se povoam por cá. Menos comiseração por chineses ou brasileiros, mais compaixão pelos de Leste e pelos africanos. Estranho é que, ao cabo de pouco tempo em viagem por África e no contacto com as gentes de lá, esta afinidade foi por água abaixo. Rapidamente me tornei imune à degradação, à miséria e, infelizmente, também à simpatia – que, quando acontecia, na esmagadora maioria dos casos acabava por se revelar interesseira. Tentei ser sempre respeitoso e correcto para com as pessoas mas de sentimentos fui duro, impenetrável, calculista.
Recentemente, em conversa com um amigo ele argumentou que quando há tamanha desigualdade (económica e cultural) é difícil gerar-se uma empatia genuína nestas relações entre visitantes e visitados. Esta perspectiva é-me extremamente desanimadora e contesto-a com experiências próprias que tive noutros contextos semelhantes (com a hospitalidade dos nómadas mongóis por exemplo, ou mesmo numa outra África – Cabo Verde). Penso que nem sequer é uma característica continental, talvez uma cicatriz da velha questão da África Subsaariana.
A propósito e como exemplo desta dificuldade, incluo de seguida uma reflexão de Paul Theroux acerca do acto de gratificar pessoas (em África) por um serviço prestado – a gorjeta:
“-I smile; you give me money- […] Tipping confounds me because it is not a reward but a travel tax, one of the many, one of the more insulting. […] It is bad enough that people expect something extra for just doing their jobs; it is an even more dismal thought that every smile has a price.”
Os nossos 45 dias sprintando pelo Shackled Continent foram migalhas. Migalhas de tempo no outro tempo que por lá passa. Migalhas de espaço na imensidão que por lá corre. Migalhas de conhecimento na vastidão de cultura que lhe é merecida. Migalhas de importância no seu significado. Mas para mim, insubstituíveis migalhas.
O meu fim é um contraponto à rigidez racional da minha postura em viagem. Houve momentos em que baixei as defesas e a emotividade prevaleceu…
Windhoek, cinco e meia da tarde. Andamos rápido porque a noite aproxima-se e ainda temos um caminho longo até à segurança do hostel. Paramos junto à entrada de um beco estreito. O que nos faz estacar é uma sonância vinda do beco, vozes humanas em canto – música. Curiosos, avançamos. A música avança também. Deparamo-nos com um pátio ocupado por uma esplanada, um café. A maioria das mesas está vazia, apenas em duas delas estão sentadas pessoas, mzungus. A sua atenção está virada para cinco indivíduos, não mzungus, que alinhados em pé cantam à capela, sem acompanhamento de instrumentos musicais. Uma mzunga fotografa-os entusiasmadamente sem esconder um sorriso com todos os dentes. Terminam a canção introdutória. Um deles toma a palavra e apresenta a actuação. Vêm do Zimbabué, vão interpretar canções tradicionais e também imitar animais. Recomeçam a cantoria com a canção zulu Shosholoza (originalmente cantada por trabalhadores emigrantes da Rodésia viajando no comboio a caminho das minas de ouro no Transvaal, Joanesburgo). Vozes elásticas, graves e agudos combinados, ritmo e melodia, harmonia. Movimentos corporais e percussão orgânica.
Arrepios percorrem-me a espinha num sobe e desce. Os olhos humidificam-se.
São seis da tarde e a noite não espera. Vamo-nos embora que os predadores preparam-se.
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