18 dezembro 2006

71. Dormidas

Hotel, hostéis, backpackers lodges, guest houses, pensões, pensõezecas, campismo, campismo improvisado, tenda de campanha, cabana, challet, buses em andamento, buses parados e deck de ferry-boat. Um belo sortido de cada uma das tipologias de alojamento que tivemos o prazer de experimentar neste Fora do Mapa.
Para facilitar este resumo final, arrumámos o sortido em três naipes: Debaixo de tecto, Nas lonas e Sobre rodas.


Debaixo de tecto
Chapéus de casas há muitos! E tal como cada cabeça, cada quarto também dita a sua sentença.
O
Rivendell, em Windhoek, foi o melhor lugar sob tecto onde ficámos alojados nesta viagem. É uma moradia com jardim e piscina, quartos acolhedores (uns com casa-de-banho, outros sem), alpendre fresco para o descanso do fim do dia e uma cozinha comum muito funcional. Esta casa-de-hóspedes é claramente direccionada para receber turistas não-africanos tal como outros lugares por onde já tínhamos estado (Joanesbrugo – Gemini Backpackers Lodge; Cidade do Cabo - Inn Long Sreet ; Swakopmund - Villa Wiese) ou por onde iríamos passar (Caprivi Strip - Ngepi Camp; Livingstone - Jollyboys Backpackers; Ilha de Likoma - Mango Drift). Mas ao contrário deste últimos, no Rivendell colaboram com empenho namíbianos em todas as tarefas (o jardineiro, as senhoras da limpeza, as senhoras que passam a roupa, e as “gestoras” - diurna e nocturna), nem o negócio é aqui encarado como uma empreitada de sorrisos à chegada e indiferenças à partida. Gostámos da sincera simpatia discreta mas muito prestável e aqui deixamos a nossa recomendação para quando forem ou revisitarem a Namíbia.
Zâmbia, Livingstone, duas noites, dois alojamentos, dois estilos: Jollyboys e Kutaway Lodge. O primeiro é um típico alojamento para backpackeres looking for fun, o segundo um típico alojamento para os “locais”. O primeiro tem piscina, ping-pong, snooker, loja de artesanato, internet, serve pequenos-almoços, snacks, jantares e bebidas, organiza viagens às Cataratas Vitória, bungi jumping, jet boat rides, micro flights, scenic helicopter flights, river boarding, white water rafting canoeing e certamente qualquer coisa mais!! O segundo nem vem no Lonely Planet. Tem um pátio sombreado para onde dão todos os quartos e à volta do qual se espojam sofás e poltronas coçadas. Tem um restaurante vazio e na cozinha uma só cozinheira. O trinco da porta do nosso quarto nem trancava - durante a noite encostámos a cama à porta – a água quente acabou no fim do banho do Quico para voltar uma hora mais tarde depois de eu já me ter lavado com um frio fino de água. Suspeitámos que poderia tratar-se de uma pensão de meninas mas foi a primeira vez que nos sentimos dentro de um alojamento estilo afro.
Mas em Moçambique (ui!) íamos ter tempo de nos fartar dos alojamentos estilo afro. Por exemplo, em Lichinga não fui capaz de usar a casa-de-banho; em Cuamba e em Nampula tomávamos banhos de balde, despejávamos o autoclismo de balde também e ainda lavávamos os dentes com água do mesmo bidão; em Pemba - no Nautilus Beach Resort - o Quico travou uma batalha de gritos verdadeiros contra uma baratonga voadora; e em Maputo – no The Base Backpackers tivemos o cesto do lixo do quarto atacado por um cardume delas, tamanho small.
Enfim, à quinta semana de estilo afro já estávamos a ficar pretos com tanto sarro! E mesmo tendo começado a procurar lugares “melhorzitos” só nos desencardimos com eficácia na Ilha de Moçambique na Casa de Hóspedes Mooxelelya ou, mais tarde, no Íbis (como já foi devidamente elogiado lá atrás em Splurge e em ... Maputo ao nosso colo).


Nas Lonas
Carregar às costas a tenda, os colchões, os sacos de cama, os lençóis de seda, as redes mosquiteiras e até uma pequenina almofada foi mais proveitoso do que pensaríamos. Para além de reduzirmos nas despesas e de nos garantir a auto-suficiência, o material de campismo revelou-se de grande importância em situações que não tínhamos previsto: a tenda safou-nos várias vezes de ficarmos pendurados à conta de “está tudo cheio” menos a relva; os colchões de encher serviram várias vezes para encorpar vários colchões verdadeiros (de cama) mas muito encovados; os lençóis de seda garantiram-nos o conforto e frescura sobre outros preparos de panos menos limpos.
Logo à nossa estreia como campistas em África, ficámos em cinco noites acampados em cinco lugares diferentes. O monta-desmonta do quarto cansa mais a mente do que o dormir no rijo cansa o corpo. Depois destas cinco dormidas intervalámos duas noites em boa cama mas quando queríamos continuar a usufruir dos prazeres físicos de um leito bem posto batemos à porta do Ngepi Camp onde vago só estavam os lotes para montar tenda. Na última noite no Ngepi tivemos de alugar uma tenda de campanha porque o bus partia antes de chegar a luz do sol e não era a pilhas que conseguiríamos fazer caber todo o material dentro das mochilas. Mas partíamos da Namíbia com uma cama ao fundo do túnel. Rumávamos à Zâmbia, apontados a dormir em Livingstone, e acertámos em cheio no Jollyboys Backpackers onde estava tudo “booked-up, we just have camping or dorms” … e mal por mal lá acabámos a montar a tenda outra vez.
Memorável fica a noite de campismo improvisado (ou melhor, abençoado) à porta da Reserva da Costa dos Esqueletos, na Sringbokwasser Gate, num círculo relvado gentilmente emprestado por sete galinhas e seu galo. Naquele fim de tarde, depois de concluídas algumas peripécias, estávamos à beira de não ter um lugar para dormir. Quando indagámos o funcionário da Sringbokwasser Gate sobre a hipótese de acampar naquele circulo de relva (que na verdade tinha apontado a si uma tabuleta que sussurrava amping ouvimos um desculpado “ah sim podem, mas atenção que ali não se paga”! Enfim, lá a família do guarda partilhou connosco a bebé nascida há sete dias e emprestou-nos o fogão onde aquecemos uma sopa instantânea que só por acaso ainda tínhamos. A Terra, a nascente partilhou uma paisagem desértica num amarelo sem fim e a poente um pôr-do-sol sobre nuvens que se confundiam com ondas.


Sobre Rodas
Nos buses tanto dormimos em bancos aveludados e reclináveis para de manhã sermos acordados com o cheiro do café servido a bordo (serviços Sul Africano e Namibiano), como dormimos entre corredores de baratas num bus estacionado no terminal (de Lilongwe) à espera que o sol raiasse para que a segurança nascesse.
De todos os filmes que vimos passarem nos vídeos dos autocarros aquele de acção mais intensa, o com maior suspense, foi o filme em que nos vimos metidos no trajecto entre Joanesbrugo e a Cidade do Cabo: estivemos no meio de uma tempestade de relâmpagos! Mesmo no meio, com relâmpagos ora de um lado ora de outro. Na escuridão da noite vê-se bem a raiva com que os raios furam a terra – temi que nos furassem a fuselagem do autocarro. Confortei-me na total ausência de preocupação de todos os outros passageiros, e tripulação.
Merecendo registo houve também a dormida debaixo das estrelas a bordo do ferry-boat Ilala (não propriamente sobre rodas mas sim em movimento. À partida de Chipoka, as águas espelhadas do Lago Malawi prometiam uma bela noite ao ar livre. Depois de um jantar a bordo de peixe frito, montámos os colchões e sacos de cama sobre as madeiras polidas do deck, num lugar escolhido ao milímetro para escapar ao óleo dos cabos, ao barulho malcheiroso do motor, à luz das gambiarras, aos canivetes suíços e às, igualmente inconvenientes, baratas locais (com uns 6 cm de envergadura). Aparentemente estávamos bem protegidos, mas a meio noite o vento levantou-se e a chuva acordou-nos cuspida com violência. As exigências milimétricas de há duas horas atrás passaram para outro plano e fomos re-montar os colchões na zona coberta do convés, bem perto do barulho malcheiroso do motor, das luzes e da música teimosas do bar. E assim adormecemos, ao ritmo dos coices da ondulação, eu num sono leve e sempre na cisma de que as mochilas, as máquinas e as botas haviam de ir borda fora num destes gingares (que de manhã ainda faziam dançar o Ilala e enjoar o meu estômago!).


E pronto, foi por lugares assim que dormimos. Nas primeiras noites fartei-me de sonhar com a iminência da partida como se ela ainda não tivesse acontecido, e sempre em episódios rocambolescos que punham em perigo a sua concretização (nunca me tinha acontecido… Freud explicaria!). Depois passámos às noites partilhadas com bichinhos: foram passos de mabecos (cão selvagem africano), risos de hienas, osgas nas paredes, formigas nos pés da cama e finalmente baratas e mosquitos. À chegada a Moçambique sobrepôs-se aos bichos um calor terrível que nem à noite passava, deixava de arder na pele mas continuava a colar. E depois lá voltaram os sonhos, desta feita com as rotinas que nos haviam de esperar no regresso a Portugal.
Abafado, amplo, arejado, arrogante, autêntico, barato, barateiro, barulhento, básico, carote, caríssimo, castiço, sombrio, familiar, frio, imundo, limpo, luminoso, pequeno, postiço, prestável, sujinho, típico… é distinta a diversidade de poisos onde temos dormido, nesta e noutras viagens! Distinta e de profunda impregnação: uma vez, num exercício de memória, conseguimos recuperar cada um dos lugares de noites passadas em cada uma das viagens que já fizemos juntos.


Backpacker's travel guides to Southern Africa:
Coast to Coast
The Alternative Route




Gemini, camping no Waterberg, o bonito Rivendel; Vila Wiese, Mango Drift, The Base; Jollyboys, Kutaway pátio, Kutaway quarto

2 comentário(s):

Anonymous Anónimo disse...

Lencóis de seda? Vocês levaram lençóis de seda?! Que ideia tão fixe e requitada! Onde é que se arranja dessas coisas? Fez-me lembrar a Legião Estrangeira no norte de África bebendo o seu chá das cinco em toalhas de linho bordado e chávenas de porcela de Limoges.

8:14 da tarde  
Blogger Jota disse...

São Lençóis de seda para viagem: um lençol-saco que se arruma num envelope rectangular com um palmo (dos meus, portanto um palmito) por uma mão travessa e de 170 gramas de peso. Uma bela compra, uma muito útil e fina compra. Foram adquirida no Decathlon! (há dois anos).

12:21 da manhã