31 dezembro 2006

76. FECHO DE CONTAS?

Para as recorrentes perguntas sobre Como foi que correu? Correu tudo bem? Gostaram? Do que foi que gostaram mais? amanhei uma resposta que arrumei na manga: O melhor foi chegar…! Desde olhares indulgentes, olhos esbugalhados, ou piscares de olhos, as reacções seguiram-se de acordo, provavelmente, com a preocupação inerente à pergunta feita. Mas era esta a minha melhor e a mais sincera resposta com o tempo que havia disponível para o diálogo. Noutras conversas, acompanhadas a chá e biscoitos, as explicações demoravam-se mais, mais do que até este post aguentará.
Não foi uma viagem nada fácil, nem prazenteira, nem meditativa. Foi cansados, ensonados, receosos, sujos, vigilantes e uma ou outra vez desacreditados que fomos desde a costa do Atlântico até à costa do Índico. Numa das conversas a chá e biscoitos alguém nos interpelou: Mas não era disso que iam à espera? Pois é, devíamos ter ido um bocadinho mais à espera “disso”? E já agora, “disso”? “Disso” o quê? A África por onde andámos não é nada do que se espera dela, mesmo que dela se espere tudo! Certo é que se alguém ler estes relatos e se puser a fazer o mesmo trajecto não vai encontrar senão surpresas e trazer do lugar outras experiências e outras histórias. Mais do que ouvir contar, do que ver imagens, do que pesquisar, há que ir até lá para conseguir perceber do que se fala quando se fala “disso” de África. A cada visitante África desvenda-se com uma forma própria.
Como exemplo "disso" repito a resposta que o Paulo de Mumemo nos deu quando, na sequência do seu relato sobre uma recente estadia na cidade do Porto, para assistir a uma formação, lhe pedimos que falasse sobre o que tinha achado de Portugal: que não sabia dizer, que era tudo tão diferente, mas não havia de se esquecer da passagem por Lisboa, uma cidade tão limpa que mesmo depois de um dia inteiro a caminhar pela cidade não tinha sido necessário engraxar os sapatos. Previsível? tão imprevisível como lógico.
Guardo a experiência desta Força da Terra. É ela quem mais ordena. É ela quem faz os seus povos serem como são, e preocuparem-se com o pó nos sapatos. Nós, europeus brancos do séc. XXI, não conseguiremos nunca antecipar-nos ao que de facto nos espera durante uma visita ao continente Africano. Não somos de lá, vivemos há anos sempre calçados e caminhamos sobre passeios de pedra e estradas de alcatrão. Podemos ir na expectativa “disso” mas nunca vamos acertar em cheio na previsão. Porque é que havemos de querer ser todos iguais? Porque razão achamos que esses povos devem ter o que nós temos ou ambicionar o que ambicionamos? Ou serão estes frágeis pretextos para podermos jogar as nossas cartas brancas?


Desta vez espremi do blog um Q-terapêutico que me ajudou a sair de algumas das experiências mais incómodas, permitindo-me ganhar uma perspectiva descontraída sobre elas e rir-me onde antes me tinha dado vontade de chorar.
Mas não foi sempre com prazer que me sentei à frente de papel ou teclado (esta coisa da disciplina não combina com a minha forma de escrever por inspiração). A produção deste post encetei-a contra a minha vontade. Por um lado é certo que chegámos há mês e meio atrás e estou já cansada de ocupar os meus tempos (que seriam livres) com a conclusão de posts e posts, uns começados ainda no sul de África, outros por lá magicados, outros achados cá. Mas por outro lado sinto-me a precipitar um “Fim” onde não quero chegar porque ainda não consegui perceber tudo o que vi ou senti, nem consigo perceber a diferença do que vejo. Mas há que distinguir: Blog e Viagem. Este é o fecho da minha participação no Fora do Mapa 2006. O fim dos relatos escritos. O fim dos pensamentos condicionados para posteriormente serem convertidos em palavras que se leiam.


On croit qu’on va faire un voyage, mais bientôt c’est le voyage qui vous fait, ou vous défait Nicolas Bouvier, L’usage du Monde (in Livre des Déserts)
Parece-me bem que esta viagem me desfez e aos poucos me tem vindo a fazer.
Fecho as contas ao blog, mas ainda não é desta que vou fechar contas com a Viagem.

75. MZUNGU

Mzungu significa Branco em swahili, homem ou mulher Branco(a).
Eu sou mzungu e fui bem lembrado disso ao longo do norte remoto da nossa viagem. As crianças apontavam-mo com gritos estridentes entre o gozo, o susto e a pedinchice: “Mzungu! Mzungu! ”Em Moçambique, quando não era mzungu era Patrão – um resquício ainda difícil de apagar. Esta naturalidade com que se distinguem as pessoas pela raça até pode ser candidamente inocente mas não deixa de me ser perturbadora.


O Portugal de hoje, e em particular Lisboa, é um lugar cosmopolita no qual eu me sinto bem. A sopa da nossa sociedade mistura emigrantes, turistas, estudantes e nativos. O prato é salgado e às vezes azeda mas quando comparado com certas comidas estrangeiras... bem nos podemos regozijar com o nosso meltingpotezinho. É feio discriminar mas confesso que no meu interior sinto de maneira distinta a presença dos vários forasteiros que se povoam por cá. Menos comiseração por chineses ou brasileiros, mais compaixão pelos de Leste e pelos africanos. Estranho é que, ao cabo de pouco tempo em viagem por África e no contacto com as gentes de lá, esta afinidade foi por água abaixo. Rapidamente me tornei imune à degradação, à miséria e, infelizmente, também à simpatia – que, quando acontecia, na esmagadora maioria dos casos acabava por se revelar interesseira. Tentei ser sempre respeitoso e correcto para com as pessoas mas de sentimentos fui duro, impenetrável, calculista.
Recentemente, em conversa com um amigo ele argumentou que quando há tamanha desigualdade (económica e cultural) é difícil gerar-se uma empatia genuína nestas relações entre visitantes e visitados. Esta perspectiva é-me extremamente desanimadora e contesto-a com experiências próprias que tive noutros contextos semelhantes (com a hospitalidade dos nómadas mongóis por exemplo, ou mesmo numa outra África – Cabo Verde). Penso que nem sequer é uma característica continental, talvez uma cicatriz da velha questão da África Subsaariana.
A propósito e como exemplo desta dificuldade, incluo de seguida uma reflexão de Paul Theroux acerca do acto de gratificar pessoas (em África) por um serviço prestado – a gorjeta:
“-I smile; you give me money- […] Tipping confounds me because it is not a reward but a travel tax, one of the many, one of the more insulting. […] It is bad enough that people expect something extra for just doing their jobs; it is an even more dismal thought that every smile has a price.”


Os nossos 45 dias sprintando pelo Shackled Continent foram migalhas. Migalhas de tempo no outro tempo que por lá passa. Migalhas de espaço na imensidão que por lá corre. Migalhas de conhecimento na vastidão de cultura que lhe é merecida. Migalhas de importância no seu significado. Mas para mim, insubstituíveis migalhas.
O meu fim é um contraponto à rigidez racional da minha postura em viagem. Houve momentos em que baixei as defesas e a emotividade prevaleceu…


Windhoek, cinco e meia da tarde. Andamos rápido porque a noite aproxima-se e ainda temos um caminho longo até à segurança do hostel. Paramos junto à entrada de um beco estreito. O que nos faz estacar é uma sonância vinda do beco, vozes humanas em canto – música. Curiosos, avançamos. A música avança também. Deparamo-nos com um pátio ocupado por uma esplanada, um café. A maioria das mesas está vazia, apenas em duas delas estão sentadas pessoas, mzungus. A sua atenção está virada para cinco indivíduos, não mzungus, que alinhados em pé cantam à capela, sem acompanhamento de instrumentos musicais. Uma mzunga fotografa-os entusiasmadamente sem esconder um sorriso com todos os dentes. Terminam a canção introdutória. Um deles toma a palavra e apresenta a actuação. Vêm do Zimbabué, vão interpretar canções tradicionais e também imitar animais. Recomeçam a cantoria com a canção zulu Shosholoza (originalmente cantada por trabalhadores emigrantes da Rodésia viajando no comboio a caminho das minas de ouro no Transvaal, Joanesburgo). Vozes elásticas, graves e agudos combinados, ritmo e melodia, harmonia. Movimentos corporais e percussão orgânica.
Arrepios percorrem-me a espinha num sobe e desce. Os olhos humidificam-se.
São seis da tarde e a noite não espera. Vamo-nos embora que os predadores preparam-se.

30 dezembro 2006

74. Vendedores informais

Desde que abalámos da Namíbia e até que entrámos em Moçambique passou uma só semana. Foi o tempo que nos bastou para atravessar a Zâmbia e o Malawi. Nesses oito dias passámos por Livingstone, pelas suas cataratas, parámos em Lusaka, apressámo-nos em Lilongwe, subimos o Lago Malawi (Niassa), com direito a relax na pequena ilha de Likoma. Se tivéssemos feito isto em linha recta teriam sido uns 1250 km. Quando desembarcámos em Metangula, no norte de Moçambique, dispúnhamos de mais de duas semanas para conhecer o país. Com tantos dias por nossa conta abandonávamos assim o perfil de “turistas caducos” estilo soft e só passagem com que tínhamos atravessado a Zâmbia e o Malawi, e passávamos à condição de “turista perene”. A ideia agradava-nos. Temos para nós que é com a habilidade para percepcionar e partilhar os hábitos do lugar que conseguimos conquistar verdadeiros pedaços do que é a vida nas terras visitadas e levar connosco, para casa e pelo tempo, as melhores das recordações destas viagens. Mas estes hábitos locais que ansiamos partilhar podem também trazer rotinas que nos fazem comichão, que nos incomodam. E se assim for, será um instante para que vulgar urticária degenere numa grave infecção cutânea.
Descobri, melhor dito, confirmei que sou pessoa de pele muito sensível e de paciência curta! Durante estas duas semanas e meia de “absorção dos hábitos do lugar” confesso que fugi mais vezes e mais depressa das melgas que eram os vendedores de rua do que fugi das melgas que podiam ser portadoras de malária!


…pelo Mundo
Lembro-me, em Cabo Verde, dos vendedores Senegaleses de colares, pulseiras e outras peças de artesanato: "Ah, irmão português!!", repetiam aqueles retintos lá do continente, mas que dispersavam quando lhes dizíamos nos olhos que não valia a pena insistirem porque não íamos comprar nada.
E lembro-me da vendedora na Muralha da China que nos seguiu tal cão vadio, ao longo do troço que liga Jinshanling a Sematai. Foi uma impressionante experiência negativa quando, já à chegada, comprámos à sua colega um artigo (uma colecção de postais) mais caro do que aquele (uma garrafa de água) que lhe havíamos comprado a ela a meio do trajecto. "Ai-môla-lõnga" alegou ela, querendo com isto dizer que more longer nos tinha acompanhado ela no trajecto e portanto merecia que a maior despesa a fizéssemos consigo. Não o fizemos, não previmos a injustiça do que estávamos a fazer, também não desfizemos o erro. Aceitámos as palavras feias com que nos insultou e aprendemos a lição.
Na Namíbia ainda tive a paciência de puxar de um discurso diplomático como arma contra os vendedores atrevidos que já tinham o meu nome, o do meu irmão e o da minha irmã gravados à navalha numa pequena cabaça/porta-chaves. Tinham-me sacado os nomes com uma ligeireza de carteirista e demorei a topar-lhes o esquema. Foi já incomodada que lhes disse-lhes que me tinham enganado, que aquilo era “coisa que não se fazia” e que assim sendo não lhes ia comprar nada. Mas lá geri o assunto e os argumentos apresentados mais o chocolate derretido atirado para os seus colos arrumaram o caso.
Enfim, aqui e ali ainda fui conseguindo equilibrar esta coisa dos vendedores e esta coisa da minha maneira de ser. Mas foi em Maputo que a irritação cutânea se agravou e a infecção se instalou de armas e bagagens!


… no Norte de Moçambique
Ainda antes de sermos definitivamente empestados pelos vendedores de Maputo tínhamos já estado em contacto com outro grupo de vendedores: os vendedores refundidos do país.
Como gato a bofe se atiravam eles às janelas das Hiaces e dos buses que percorriam as terras do pobre interior norte de Moçambique. Depois das aldeias de cubatas de terra e colmo, das bananeiras, das vistas nuas de gente, a paisagem que nos chegava pelo vidro mudava para pacotes de bolacha, coloridos plásticos de bebidas, cestos com ovos cozidos e sal, algumas vezes frutas, galinhas, legumes, saquinhos de plástico com água, biscoitos fritos, batatas fritas mas não de pacote, tudo dentro de cestos assentes em carapinha ou agarrados por mãos de braços estendidos: bolacha cinco-cinco, sumo cinco-cinco. Era um negócio feito à confiança por dois lados de mãos anónimas: uma que entregava o pacote, uma outra que devolvia o dinheiro (negócio que vimos muitas vezes acabar em confusão ora porque alguém disse cinco ora porque outrem não quis dez; e bumbas uma palmada no vidro da janela ou pimbasum grito animal que calava o tropel.
A cada paragem da viagem de comboio entre Cuamba e Nampula os chamamentos aflitos dos pequenos vendedores mostravam a dependência que tinham em vender um copo de água que fosse. A cadência com que repetiam o pregão é som que não preciso de procurar para o voltar a ouvir. Um timbre agudo de voz ainda longe de ser adolescente: Á-guaaa… Á-guaaa! Fêjão-fêjão-fêjão! Cana… cana… Bananabananabananabanana! Mangáa, mangáa! Todos eles crianças com menos de 10 anos. De aqui para ali e de ali para cá descalços sobre o balastro. De trapos vestidos de pó imundos, a carregar à cabeças ou nos braços carga pesada que pouco mais leve ficava à partida do comboio. Em troca de quê todo este esforço? Não sei, nem nunca vou conseguir fazer ideia – eu não vivo numa cubata, não passo fome nem sede, não ando rota nem imunda.


Na Praia de Wimbi (bem no norte, em Pemba), tentaram oferecer-nos passeios de barco “para ver os peixinhos e os corais”. Seis moços, cada um na sua vez, vieram disponibilizar o seu barco para a actividade. E por seis diferentes vezes apontaram o mesmo bote de madeira com a risca vermelha como sendo o “seu”. À segunda já nos antecipávamos ao gesto do marinheiro, à terceira disseram-nos que era uma sociedade, à quarta já éramos nós a comandar o preço!
Terá sido por esta altura, entre a Ilha de Moçambique e a praia de Wimbi, que a urticária começou a degenerar. Precisamente quando apanhámos os negociantes em mentiras descaradas, auto desculpabilizando-se com histórias de uma família grande, tantas vezes pondo uma cara triste de mimo, com uma mão simulando levar comida à boca enquanto a outra poisava na barriga com fome.


… em Maputo
Mas em Maputo os vendedores de rua tinham galas de negociantes da capital. Sabiam atrair a vítima em inglês “mai frénde! Arô? Aro mai frénde!” ou num português local “Ámiiga! Ôo ámiiga!”. Engatavam o mesmo discurso feito à medida de cada variedade de produto: artesanatos em madeiras, pedras, tecidos; lenços de assoar, fichas triplas, raladores de cenoura (e outros legumes), panos da loiça, lenços de assoar, peúgas, pilhas, cartões telefónicos…Aos Sábados estendiam-se em feira pela Praça 25 de Junho. Durante os outros dias da semana arrumavam-se em pontos estratégicos da cidade: frente aos hotéis, à porta dos restaurantes, ou então andavam à paisana e apareciam vindos não-sei-de-onde.
Foi assim que se deu a conhecer Manel Batique (suspeito que tenha descido num rapell suave das varandas da Avenida 24 de Julho). Manel Batique surpreendeu-nos os passos de manhã quando íamos a caminho da Hiace que tomámos para Mumemo. Entabulou o diálogo: tinha uma coisa para nos mostrar. Dissemos-lhe que não queríamos comprar nada, e ele respondeu que nada queria vender, só mostrar a sua “arte”; dissemos-lhe que íamos trabalhar, e ele exibiu as mãos, ora a palma ora as costas, e disse serem aquelas mãos de artistas; dissemos-lhe que já tínhamos comprado tudo o que queríamos comprar e ele contou que era estudante mas não gostava de dar a sua arte a vender aos “vendedores” que lhe acabavam por ficar com os lucros. Fomos a Mumemo e de Mumemo voltámos. Mas foi só por acaso que tomámos o mesmo caminho, porque nem de Hiace regressámos. Manuel Batique apanhou-nos desta vez ao virar de uma outra esquina da mesma 24 de Julho (deve ter descido de um jacarandá com pára-quedas). Disse que tinha ficado à nossa espera, que tinha gostado da nossa sinceridade (aqui comecei a coçar-me), disse que não queria vender só mostrar, que a conversa da manhã lhe tinha dado sorte nas vendas do dia, pediu que ficássemos com o seu número de telefone e voltou a dizer que não queria vender só mostrar. Foi então que o Quico parou e disse (enquanto eu me coçava): mostre-lá isso então!. E o Manel puxou dos seus batiques e pousou-os no chão. Os batiques são uns tecidos pintados à mão, de tela grossa, com cores e desenhos africanos. Os batiques do Manel Batique eram iguais aos outros 990.889.107 batiques que já tínhamos vistos por toda a Maputo. (rebolei-me no chão, para coçar as costas, como vi as zebras fazerem no Etosha). Um nome assinava todas as peças: “Manel”; excepto duas delas: “Orlando” (que era o nome do pai do Manel, o pai herói que lhe ensinara toda aquela arte mas que agora vivia no estrangeiro - explicou-se ele sem termos feito uma só pergunta). A certa altura mostrei-me zangada e mandei o meu homem vir embora porque os dois minutos já tinham passado há 18. Manel Batique, compreensivo com a minha reclamação, quis oferecer-nos um pequeno exemplar de batique. Recusámos. Ameaçou pôr-se de joelhos para que ficássemos com o presente. Repreendi-o pela oferta e pela ameaça do gesto de humilhação. Manel Batique teve medo de mim, pediu-me para não ficar zangada com ele. Deixamo-lo para trás a arrumar a merda dos batiques na discreta, quase invisível, saca a tiracolo.
A minha dermatite tinha atingido um estado agudo, começava a ganhar cores violáceas com manchas negras. Mas foi à noite, quando o me Quico confessou que esteve quase-quase a comprar um batique ao Manel que chegou a ambulância e me levaram de vez para o manicómio!


Ainda hoje conservo aqui e acolá umas manchitas e cicatrizes. Só de pensar naqueles chamamentos de "amiga!" ou "mái frénde! Arô? mái frénde!" fico logo com uns pelinhos em pé. Depois, recrio na memória a mentira das posturas daqueles comerciantes de cidade, com claras intenções de roubar tanto quando pudessem ao turista disparando um preço que podia descer para metade. De seguida comparo estas tangas com cândida e esforçada honestidade dos vendedores dos buses ou do comboio que esgravatavam, entre si e os possíveis compradores, pelos cinco meticais do pregão inicial. E por fim não concluo: qual deles reflecte mais desespero? Qual deles tem vidas mais dependentes daqueles meticais?



As estações de serviço no interior norte de Moçambique; venda nas paragens do comboio entre Cuamba e Nampula; o mercado de Sábado na 25 de Junho em Maputo

19 dezembro 2006

73. FILMOGRAFIA

18 dezembro 2006

71. Dormidas

Hotel, hostéis, backpackers lodges, guest houses, pensões, pensõezecas, campismo, campismo improvisado, tenda de campanha, cabana, challet, buses em andamento, buses parados e deck de ferry-boat. Um belo sortido de cada uma das tipologias de alojamento que tivemos o prazer de experimentar neste Fora do Mapa.
Para facilitar este resumo final, arrumámos o sortido em três naipes: Debaixo de tecto, Nas lonas e Sobre rodas.


Debaixo de tecto
Chapéus de casas há muitos! E tal como cada cabeça, cada quarto também dita a sua sentença.
O
Rivendell, em Windhoek, foi o melhor lugar sob tecto onde ficámos alojados nesta viagem. É uma moradia com jardim e piscina, quartos acolhedores (uns com casa-de-banho, outros sem), alpendre fresco para o descanso do fim do dia e uma cozinha comum muito funcional. Esta casa-de-hóspedes é claramente direccionada para receber turistas não-africanos tal como outros lugares por onde já tínhamos estado (Joanesbrugo – Gemini Backpackers Lodge; Cidade do Cabo - Inn Long Sreet ; Swakopmund - Villa Wiese) ou por onde iríamos passar (Caprivi Strip - Ngepi Camp; Livingstone - Jollyboys Backpackers; Ilha de Likoma - Mango Drift). Mas ao contrário deste últimos, no Rivendell colaboram com empenho namíbianos em todas as tarefas (o jardineiro, as senhoras da limpeza, as senhoras que passam a roupa, e as “gestoras” - diurna e nocturna), nem o negócio é aqui encarado como uma empreitada de sorrisos à chegada e indiferenças à partida. Gostámos da sincera simpatia discreta mas muito prestável e aqui deixamos a nossa recomendação para quando forem ou revisitarem a Namíbia.
Zâmbia, Livingstone, duas noites, dois alojamentos, dois estilos: Jollyboys e Kutaway Lodge. O primeiro é um típico alojamento para backpackeres looking for fun, o segundo um típico alojamento para os “locais”. O primeiro tem piscina, ping-pong, snooker, loja de artesanato, internet, serve pequenos-almoços, snacks, jantares e bebidas, organiza viagens às Cataratas Vitória, bungi jumping, jet boat rides, micro flights, scenic helicopter flights, river boarding, white water rafting canoeing e certamente qualquer coisa mais!! O segundo nem vem no Lonely Planet. Tem um pátio sombreado para onde dão todos os quartos e à volta do qual se espojam sofás e poltronas coçadas. Tem um restaurante vazio e na cozinha uma só cozinheira. O trinco da porta do nosso quarto nem trancava - durante a noite encostámos a cama à porta – a água quente acabou no fim do banho do Quico para voltar uma hora mais tarde depois de eu já me ter lavado com um frio fino de água. Suspeitámos que poderia tratar-se de uma pensão de meninas mas foi a primeira vez que nos sentimos dentro de um alojamento estilo afro.
Mas em Moçambique (ui!) íamos ter tempo de nos fartar dos alojamentos estilo afro. Por exemplo, em Lichinga não fui capaz de usar a casa-de-banho; em Cuamba e em Nampula tomávamos banhos de balde, despejávamos o autoclismo de balde também e ainda lavávamos os dentes com água do mesmo bidão; em Pemba - no Nautilus Beach Resort - o Quico travou uma batalha de gritos verdadeiros contra uma baratonga voadora; e em Maputo – no The Base Backpackers tivemos o cesto do lixo do quarto atacado por um cardume delas, tamanho small.
Enfim, à quinta semana de estilo afro já estávamos a ficar pretos com tanto sarro! E mesmo tendo começado a procurar lugares “melhorzitos” só nos desencardimos com eficácia na Ilha de Moçambique na Casa de Hóspedes Mooxelelya ou, mais tarde, no Íbis (como já foi devidamente elogiado lá atrás em Splurge e em ... Maputo ao nosso colo).


Nas Lonas
Carregar às costas a tenda, os colchões, os sacos de cama, os lençóis de seda, as redes mosquiteiras e até uma pequenina almofada foi mais proveitoso do que pensaríamos. Para além de reduzirmos nas despesas e de nos garantir a auto-suficiência, o material de campismo revelou-se de grande importância em situações que não tínhamos previsto: a tenda safou-nos várias vezes de ficarmos pendurados à conta de “está tudo cheio” menos a relva; os colchões de encher serviram várias vezes para encorpar vários colchões verdadeiros (de cama) mas muito encovados; os lençóis de seda garantiram-nos o conforto e frescura sobre outros preparos de panos menos limpos.
Logo à nossa estreia como campistas em África, ficámos em cinco noites acampados em cinco lugares diferentes. O monta-desmonta do quarto cansa mais a mente do que o dormir no rijo cansa o corpo. Depois destas cinco dormidas intervalámos duas noites em boa cama mas quando queríamos continuar a usufruir dos prazeres físicos de um leito bem posto batemos à porta do Ngepi Camp onde vago só estavam os lotes para montar tenda. Na última noite no Ngepi tivemos de alugar uma tenda de campanha porque o bus partia antes de chegar a luz do sol e não era a pilhas que conseguiríamos fazer caber todo o material dentro das mochilas. Mas partíamos da Namíbia com uma cama ao fundo do túnel. Rumávamos à Zâmbia, apontados a dormir em Livingstone, e acertámos em cheio no Jollyboys Backpackers onde estava tudo “booked-up, we just have camping or dorms” … e mal por mal lá acabámos a montar a tenda outra vez.
Memorável fica a noite de campismo improvisado (ou melhor, abençoado) à porta da Reserva da Costa dos Esqueletos, na Sringbokwasser Gate, num círculo relvado gentilmente emprestado por sete galinhas e seu galo. Naquele fim de tarde, depois de concluídas algumas peripécias, estávamos à beira de não ter um lugar para dormir. Quando indagámos o funcionário da Sringbokwasser Gate sobre a hipótese de acampar naquele circulo de relva (que na verdade tinha apontado a si uma tabuleta que sussurrava amping ouvimos um desculpado “ah sim podem, mas atenção que ali não se paga”! Enfim, lá a família do guarda partilhou connosco a bebé nascida há sete dias e emprestou-nos o fogão onde aquecemos uma sopa instantânea que só por acaso ainda tínhamos. A Terra, a nascente partilhou uma paisagem desértica num amarelo sem fim e a poente um pôr-do-sol sobre nuvens que se confundiam com ondas.


Sobre Rodas
Nos buses tanto dormimos em bancos aveludados e reclináveis para de manhã sermos acordados com o cheiro do café servido a bordo (serviços Sul Africano e Namibiano), como dormimos entre corredores de baratas num bus estacionado no terminal (de Lilongwe) à espera que o sol raiasse para que a segurança nascesse.
De todos os filmes que vimos passarem nos vídeos dos autocarros aquele de acção mais intensa, o com maior suspense, foi o filme em que nos vimos metidos no trajecto entre Joanesbrugo e a Cidade do Cabo: estivemos no meio de uma tempestade de relâmpagos! Mesmo no meio, com relâmpagos ora de um lado ora de outro. Na escuridão da noite vê-se bem a raiva com que os raios furam a terra – temi que nos furassem a fuselagem do autocarro. Confortei-me na total ausência de preocupação de todos os outros passageiros, e tripulação.
Merecendo registo houve também a dormida debaixo das estrelas a bordo do ferry-boat Ilala (não propriamente sobre rodas mas sim em movimento. À partida de Chipoka, as águas espelhadas do Lago Malawi prometiam uma bela noite ao ar livre. Depois de um jantar a bordo de peixe frito, montámos os colchões e sacos de cama sobre as madeiras polidas do deck, num lugar escolhido ao milímetro para escapar ao óleo dos cabos, ao barulho malcheiroso do motor, à luz das gambiarras, aos canivetes suíços e às, igualmente inconvenientes, baratas locais (com uns 6 cm de envergadura). Aparentemente estávamos bem protegidos, mas a meio noite o vento levantou-se e a chuva acordou-nos cuspida com violência. As exigências milimétricas de há duas horas atrás passaram para outro plano e fomos re-montar os colchões na zona coberta do convés, bem perto do barulho malcheiroso do motor, das luzes e da música teimosas do bar. E assim adormecemos, ao ritmo dos coices da ondulação, eu num sono leve e sempre na cisma de que as mochilas, as máquinas e as botas haviam de ir borda fora num destes gingares (que de manhã ainda faziam dançar o Ilala e enjoar o meu estômago!).


E pronto, foi por lugares assim que dormimos. Nas primeiras noites fartei-me de sonhar com a iminência da partida como se ela ainda não tivesse acontecido, e sempre em episódios rocambolescos que punham em perigo a sua concretização (nunca me tinha acontecido… Freud explicaria!). Depois passámos às noites partilhadas com bichinhos: foram passos de mabecos (cão selvagem africano), risos de hienas, osgas nas paredes, formigas nos pés da cama e finalmente baratas e mosquitos. À chegada a Moçambique sobrepôs-se aos bichos um calor terrível que nem à noite passava, deixava de arder na pele mas continuava a colar. E depois lá voltaram os sonhos, desta feita com as rotinas que nos haviam de esperar no regresso a Portugal.
Abafado, amplo, arejado, arrogante, autêntico, barato, barateiro, barulhento, básico, carote, caríssimo, castiço, sombrio, familiar, frio, imundo, limpo, luminoso, pequeno, postiço, prestável, sujinho, típico… é distinta a diversidade de poisos onde temos dormido, nesta e noutras viagens! Distinta e de profunda impregnação: uma vez, num exercício de memória, conseguimos recuperar cada um dos lugares de noites passadas em cada uma das viagens que já fizemos juntos.


Backpacker's travel guides to Southern Africa:
Coast to Coast
The Alternative Route




Gemini, camping no Waterberg, o bonito Rivendel; Vila Wiese, Mango Drift, The Base; Jollyboys, Kutaway pátio, Kutaway quarto

17 dezembro 2006

70. BUSES

Há 58 dias atrás, no Ngepi Camp, publiquei o post CARROS. Nessa altura planeava escrever mais tarde um post BUSES, este post. Tínhamos entregue o Corola alugado e não perspectivávamos voltar a usufruir de transporte privado, entraríamos de aí em diante no reino exclusivo dos transportes públicos. Afirmava-se-me lógico, naquele ponto, separar as águas. Falaria de CARROS agora e de BUSES depois. Não adivinhava é que a partir de aí, as experiências com os transportes fossem tão fortes que, invariavelmente, estivessem presentes nos relatos do dia-a-dia (ver sobretudo os coloridos posts da Jota: CHEGADA À ILHA DE MOÇAMBIQUE e FOTOS SOBRE COMO CHEGÁMOS NÓS A PEMBA).
Olhando agora para trás, é pouco motivador (para mim e para os leitores) fazer uma análise descritiva extensa dos veículos em falta. Serei portanto curto e grosso, deixando as demais considerações para a interpretação visual das imagens (uma forma de comunicação muito mais directa).


BUSES ou MACHIMBOMBOS*:

Grandes empresas “ricas”(África do Sul e vizinhanças) com Volvos de 40/60 lugares e ar condicionado: Greyhound, Intercape, Translux/City to City – Quase profissionais sérios!


Grandes empresas “pobres” (Zâmbia, Malawi, Moçambique) com MarcoPolos de 80/120 lugares e sem ar condicionado: CR, Grupo Mecula, Transportes Oliveira – Quase profissionais a sério!


MINI-BUSES ou CHAPAS**:

Pequenos entrepreneurs “não sei se ricos se pobres”(por todo o lado) com Hiaces de 9/20 lugares e ar descondicionado: motorista (normalmente o dono do carro) e angariador/cobrador (usualmente empregado do último) constituem o staff. Partem quando cheios. O preço acerta-se à entrada e paga-se a meio percurso quando o cobrador o exigir – Um quas(o) sério de profissão!


*Nome pelo qual se designam os buses de tamanho médio/grande em Moçambique.
**Nome pelo se designam os mini-buses em Moçambique (chapa resulta do bilhete custar, noutros tempos, chapa cem).




o bus da Intercape da Cidade do Cabo até Windhoek, a hospedeira desse bus e o respectivo atrelado para as bagagens, um bus atravessando a fronteira entre as ex-Rodésias(Zâmbia e Zimbabué) nas cataratas Vitória; um machimbombo em Nampula, chapas em Maputo

16 dezembro 2006

69. O QUE NÃO HÁ ONDE DEVIA HAVER

Por ordem alfabética porque nem cronologia nem valia conseguem ordenar esta balbúrdia. Ora, em Moçambique não houve onde devia haver:

Á de…
Açúcar
no Café em Nampula – desculpe mas não vamos poder servir um café ao senhor. Sim, café temos mas não temos açúcar. Acabou ontem.
Água nos canos em 3 alojamentos dos 7 por onde ficámos - banho de púcaro tirado de um bidão, sanita despejada a balde, dentes lavados à balda.
Água quente em 5 alojamentos dos 7 por onde ficámos é verdade que o calor torna este banhos suportáveis mas somada uma dúzia de banhos continuados o corpo já não se sente limpo mesmo se bem esfregado com sabão.

Cê de…
Colheres de sopa no restaurante – pedimos 3 sopas. Vieram 3 sopas, 2 colheres de sopa e 1 de sobremesa. O melhor foi esperar que uma das colheres ficasse disponível. A sopa era grossa demais para se beber.

É de…
Elevador
no hotel de 11 andares – no Íbis um papel amarelado e de cantos dobrados informava que por causa das cheias o elevador (um de dois) não estava em funcionamento. Esperavasse que a bomba retirasse a água do poço do elevador.

Guê de…
Gasolina
no depósito da pick up – transporte público que tomámos de Metangula para Lichinga, tossiu o motor, praguejou o condutor óh oh tá querendo arranjar problema, desapareceu no escuro e apareceu em meia hora passada com um galão de gasosa.

Ésse de …
Selos
na estação dos correios – os presenteados podem confirmar 33 meticais da nova família ou 33000 meticas em cada postal para Portugal. Em Pemba fomos por duas vezes à estação de correio: importância disponível em selos atingiria as sete unidades para perfazer o valor desejado; ainda em Pemba fomos a outra estação de correio: tinham vendido os últimos selo ontem (!!); em Maputo acabámos com os selos de 33 meticais no quiosque dentro dos correios e tivemos de ir comprar mais ao guichet. Os primeiros pareciam reciclados de outros envios, datavam de 2004 os segundos de 2002.

Tê de …
Troco
nas lojas - e isto de forma sistemática, no início pensámos que se estavam a fazer à gorjeta mas a repetição da situação, e o facto de assistirmos a moçambicanos serem vítimas do mesmo mal, fez-nos concluir que o caso é crónico. Alguém nas aldeias do interior anda a enterrar moedas de mil meticais.

E claro que também não há horários de transporte, nem paragens de autocarro, nem lugares marcados, nem lugares de todo; nem tampouco há horários de estabelecimentos comerciais ou serviços público, ou quando os há trata-se apenas de um papel pregado que não vincula mais nada; também é fácil acertar com algo que apesar continuar apresentado no menu já não há ou nem houve e ser-se bem atendido num dia não garante o sucesso se repetido no dia seguinte. Cruzámos ainda com a falta de determinadas pessoas às quais estava atribuída uma função exclusiva, resultado esperar que chegasse o sr. Chefe da polícia ou a senhora da caixa registadora.

Tudo isto devidamente misturado com recorrentes, “sim temos tudo”, “não há problema”, “sim há mas não funciona” e pés arrastados e gestos lentos. Et voilá, preciso de civilização (ainda que só da nossa).



a capela do forte de D.Sebastião onde nem à segunda visita pudemos entrar porque não se sabia da chave; o segundo posto de correios, terceira tentativa frustrada para comprar selos; e como se adia a inauguração de uma exposição

27 novembro 2006

68. WE(O)MAN

Nós os homens, achamo-nos mais fortes que o sexo fraco. Na força medida em newtons verificar-se-á esta assumpção mas força, num sentido mais etéreo, é cosa mentale e este post é um tributo à têmpera das mulheres que viajam sozinhas por esta África!


“And thanks a lot for the bandage, you guys”. Foram estas as últimas palavras de Coline, quando nos despedimos. Francesa, 26 anos, jurista, auto-desempregada ao serviço da ONU e manca de uma perna (temporariamente, espero).
Quando a conhecemos no ferry-boat Ilala já Coline coxeava há uma semana, consequência de um desafortunado acidente de viagem. Ao descer de um mini-bus com as suas mochilas pesadas colocou mal o pé no degrau e torceu o tornozelo com uma tal violência que se estatelou no chão, perdendo os sentidos durante 20 minutos. Esta contrariedade não a demoveu de continuar a gozar as suas seis semanas de férias viajando por cinco países da África Austral. Nem pensar! Desembaraçada e transpirando recursos, brincava com a condição negra e inchada do seu pé: “Today, disaster!...now I will stay on the beach and rest”. No dia anterior tinha massacrado o calcanhar já dorido com uma caminhada de 10 km pela Ilha de Likoma, e em chinelos! (as botas, doou-as algures no Zimbabué). “Tomorrow I’ll go again, I get bored when I stay two days in the same place. I have to keep moving. One day on the mini-buses, two days rest, that’s my rhythm”.
Coline tirou direito internacional e durante este último ano o seu trabalho foi defender alguns dos altos responsáveis acusados de genocídio nos tumultos de 1994 no Ruanda. O tribunal criminal internacional da ONU especialmente criado para julgar estes crimes está sedeado em Arusha na Tanzânia, a sua residência antes do desanuviamento das férias. “The judges are very bad, there is no justice, the sentences are already decided, everybody will get ‘life’, the political pressure from the new government in Rwanda and the international community is very strong…I was fed up, now I have to find another job”…Coline aturou o sistema durante um ano. Desempregou-se e foi viajar.
Dez dias depois da despedida, voltámos a encontrá-la em Pemba. Avistámo-la num bus e de longe ainda trocámos umas palavras: -”How’s your foot?”-“It’s going much better!”-“when do you leave?”-“Tomorrow? Me too, have to keep moving...” E lá foi, com a nossa ligadura a amparar-lhe o caminhar.


Das várias fêmeas que compareceram no casting, elegi a Coline para protagonizar a Scarlett O'Hara deste post. O papel de Melanie Hamilton atribui-o a Becky. Inglesa, 21 anos, chefe-pasteleira, auto-desempregada ao serviço dum restaurante chique de Manchester e manca das duas pernas (piadinha paralela). Em sentido figurado, refiro-me à sua inabilidade natural. Se Coline emanava desenvoltura, Becki manifestava o oposto. Introvertida, indecisa, pouco expedita, aparentava uma (in)preparação latente para as exigências duma viagem a solo por África.
Em Cuamba, notámo-la sombria a cirandar pelas ruas (é difícil não reparar em brancos no meio de tantos pretos). Várias vezes nos cruzámos com ela e nunca nos olhou nos olhos até que um momento de aflição a fez revelar-se: -“Sorry, this is going to sound really weird but I’m 10 meticais (0.30 euros) short in order to buy the train ticket to Nampula, and I don’t want to travel third class. Can you borrow me?”-“Sure, no problem.” -“Thanks a lot you guys, when we get to Nampula I will pay you back”. Como ainda era véspera da partida e lhe perspectivámos um jejum nas próximas 30 horas, sugerirmos-lhe: -”You know, there’s an ATM machine just around the corner...”. Ela não sabia, como não sabia umas quantas outras coisas úteis em Moçambique – exprimir-se em Português, por exemplo. A partir de aí, de Cuamba até à Ilha de Moçambique, foi nossa companheira de viagem, com visíveis vantagens para o lado dela.
Becky escolheu como destino da sua primeira grande viagem África. Do Egipto até Madagáscar, em nove meses. Porquê? –“The Nature, the animals...” E lá foi, com alguns conselhos nossos a ampararem-lhe o caminhar.


Coline e Becky. Tão diferentes e tão iguais na atitude corajosa de lá estarem sós, naquelas circunstâncias, na força mental. Pena é esta firmeza feminina não contaminar mais o espírito de muitas mulheres africanas, tão estigmatizadas que estão com tantos flagelos: mães solteiras, alimentadoras da família, poligamia, mutilações genitais, apedrejamentos... ai we(o)man!



Coline, Becky e a condição feminina em África nas portas das casas de banho do Mango Drift

20 novembro 2006

67. Tasca do Quinzena

No troco do regresso à civilização, que nos rodeia o dia-a-dia de quando não estamos Fora do Mapa, recebemos o atraso da Ibéria à saída de Barajas e, com mais agrado, o céu enublado e a cidade húmida, os mimos dos que nos esperavam, as novidades trocadas no almoço scalabitano em família e as várias perguntas que não têm resposta nos textos deste blog.
Esta rotina, que conhecemos bem, vai entrar no nosso metabolismo tão depressa quanto foi fazer os 8000 km de avião que nos levaram a sair de Joanesburgo e pousar em Lisboa. Num repente. Hoje, segunda-feira, estamos já de volta aos horários do dia trabalho, da semana em Lisboa. Estaremos diferentes? Bem, acordar às seis da manhã, como hoje, nunca foi hábito meu.
O ritmo Dentro do Mapa também nos apraz e temos muitas saudades de o sentir a compassar a nossa vida – saudades do conforto dado pelos hábitos e pelas rotinas que escolhemos para serem as nossas. Mas temos agora de agarrar o que trouxemos connosco das últimas seis semanas e meia para que não seja já devorado por este corre-corre glutão.



Joanesburgo International Airport; nuvens madrilenas; bem-vindos!

17 novembro 2006

66. DE VOLTA A JOANESBURGO


As sofríveis memórias de há seis semanas fizeram-nos planear um regresso ao ponto de partida o mais indolor possível. Se houvesse maneira de entrar no avião sem tocar naquele famigerado ambiente ter-lo-iamos feito, de tão saturados que estamos de experiências marcantes. Chega! Já temos que baste por agora! Precisamos é de espaço e tempo de digestão.
Destarte (andei a adiar o emprego desta palavra algo recorrente na minha escrita e agora é que foi), o mais indolor possível foi confiar nas “fiáveis” ligações dos autocarros sul-africanos e chegar a Joanesburgo seis horas antes da partida do avião. Dispensámos uma dormida e reduzimos a estadia à necessária travessia entre a Park Station, o complexo de transportes localizado bem no centro, e o aeroporto internacional, a 30 km de distância.
O bus da Translux revelou-se luxuoso q.b. (sem baratas mas as fugas de água do ar condicionado choviam por cima da cabeça de alguns passageiros) e cumpridor do horário tabelado. Às 16:00 estávamos na Park Station. Os 200 rands (cerca de 20 euros) que tínhamos reservados para o táxi (o transporte mais indolor) não chegaram: “it’s 220 rands Sir”. Último levantamento nos ATM - 150 Rands e sempre tomamos uma bucha antes do voo. O Táxi, apesar de não ter qualquer identificação, pareceu ser oficial e serpenteando o trânsito caótico de uma sexta-feira à tarde lá nos deixou nas International Departures.
Despedimo-nos de Joanesburgo novamente “pelo vidro”...



16 novembro 2006

65. PARA CASA

Começamos amanhã a última etapa desta aventura. Depois de um terrestre Altântico-Índico, em 5 semanas, celebramos o regresso num aéreo transcontinental África Austral-Europa Ocidental, em 24 horas. Ao fundo: o conforto da casa.
Viajamos de Maputo até Joanesburgo num bus da única empresa das três grandes que ainda não experimentámos. Depois da Greyhound e da Intercape, vamos seguir a bordo da que tem fama de ser a mais luxuosa de todas, a Translux, que nos foi recomendada pelo revendedor de bilhetes por ser a mais fiável. Com partida marcada à 7:45 temos chegada prevista 8 horas depois à Park Station de Jo'burg. O avião da Ibéria parte às 22:20 locais. Com escala em Madrid será às 9:15 da manhã de sábado que pisaremos o Aeroporto da Portela, umas 27,5 horas depois da saída de Maputo. Contudo, depois destas seis semanas e meia e deste compasso de espera e descanso pelo qual optámos (mas que nunca mais acabava) em Maputo, as 27,5 horas são um palmo de tempo.
Estamos desejosos por chegar! Até lá!!
(o que é que está em cartaz nos cinemas?)



passeio até à "outra banda": a praia de Catembe, do outro lado do rio Espírito Santo; e por falar em cinema...